Na Web 2.0 fala-se muito sobre a geração de conteúdo por usuários, mas pouco sobre a participação deles na produção das ferramentas que publicam o conteúdo e mediam as relações.
Na discussão sobre Web 2.0, as relações de poder entre pessoas e artefatos estão sendo questionadas. Artefatos por si só não têm poder, mas dão poder a quem faz uso deles. Artefatos dão ainda mais poder para quem os cria, pois suas estruturas permitem controlar seu uso e, indiretamente, as pessoas que os usam. Entretanto, o controle não é total, pois os controlados tendem a questionar seus controladores, reinvindicando maior poder sobre as artefatos.
Um dos pontos cruciais da chamada Web 2.0 é a arquitetura da participação que, segundo Tim O´Reilly, diz respeito à abertura das estruturas dos sistemas para a recriação. Tim lembra que Linus Torvalds, criador do Linux, já dizia que a arquitetura aberta era até mais importante do que a abertura do código-fonte. Mesmo que o Windows tivesse o código-aberto, não seria possível ter a mesma liberdade para a recriação como o Linux, devido a restrições de sua arquitetura, em especial, a interdependência vertical de módulos; a arquitetura do Windows reproduz a hierarquia de poder interna à Microsoft.
A política da arquitetura, se tornou tema de questionamento porque estamos vivenciando um ponto de mudança nas relações de poder entre homens e artefatos. Pessoas que não possuem cargos poderosos – como administradores e legisladores, que não possuem credenciais de poder – como jornalistas e engenheiros – e que não possuem nenhuma forma de favorecimento junto a estruturas de poder estão podendo recriar alguns artefatos de acordo com a sua vontade.
Na verdade, essa possibilidade sempre existiu. A utilização da lasca de pedra como instrumento de corte é uma recriação; o emprego de um grampo de cabelo para abrir portas é uma recriação; a mistura explosiva de Mentos e Coca-Cola é uma recriação; o concurso de Geysers de Mentos promovido pelo fabricante também é uma recriação, mas a diferença dos outros exemplos é que se trata da ação de uma organização. Ao invés de a empresa proibir a veiculação do vídeo no Youtube, como fez a Coca-Cola, ela incentivou a recriação de seu produto. Depois, a Coca-Cola voltou atrás e criou o seu próprio concurso, mas já era tarde demais para enganar seus consumidores.
A novidade do momento é que a recriação dos artefatos está se tornando, aos poucos, institucionalizada. Os tradicionais papéis de produtores e consumidores e os processos de produção e consumo estão se tornando obsoletos para essa nova realidade. As organizações que quiserem persistir por mais tempo precisam rever suas estruturas de poder, pois, do contrário, podem se tornar desnecessárias para a produção de certos artefatos em pouco tempo (vide crescimento do DIY – Do It Yourself - Faça você mesmo).
Na minha posição de designer com experiência majoritária em projetos de organizações com fins lucrativos, consigo distinguir cinco papéis relativos ao poder que as pessoas exercem sobre os artefatos que usam. Como esse poder advém da negociação entre o indivíduo e a organização, esses papéis também podem ser vistos como fases na relação entre indivíduo X organização, não necessariamente nessa mesma ordem:
O artesão é aquele que constrói artefatos sozinho, sem o auxílio de organizações, por vezes usando ferramentas e materiais por ele mesmo forjados. Ele pode até se aproveitar de artefatos e idéias de outras pessoas mas, para utilizá-los na construção do novo artefato, precisa conhecê-los em profundidade. O artesão conhece o que produz porque não há divisão do trabalho. Ele pode, a qualquer momento durante o uso, modificar o artefato para torná-lo mais adequado à situação, o que confere alto poder de inovação.
Quando as soluções dos artesãos parecem interessantes para outras pessoas, a técnica é copiada e utilizada por outros artesãos. Logo surge uma organização que se apropria da técnica do artesão e distribui a produção numa linha de montagem. Para garantir a consistência do processo de produção dividido entre várias pessoas são empregadas máquinas que só aceitam determinados inputs e só retornam determinados outputs. Não há a possibilidade de modificar o artefato durante a produção ou durante o uso. As pessoas estão condenadas a se adaptarem às máquinas e aos artefatos produzidos porque não dispõem do conhecimento nem das ferramentas para modificá-los. Os processos de produção e de uso se separam, os artefatos se tornam caixas-pretas e a inovação emperra; tudo isso para que a quantidade produzida aumente.
A partir do momento em que há excesso de oferta, a arena de competição entre as organizações pode passar a incluir também os processos de uso. Não basta que a produção seja eficiente, o uso também tem que ser, do contrário as pessoas podem não comprar o seu produto.
Para melhorar a qualidade de seus produtos, as organizações conectam os processo de uso aos processos de produção num fluxo de retroalimentação. Os produtos são lançados e a produção se ajusta conforme seu desempenho no mercado, seja mensurado em número de vendas, seja em satisfação do consumidor.
Em alguns casos, os processos de uso são simulados para informar o processo de produção, ou seja, um protótipo do produto é testado com usuários finais, mas estes não participam do processo de produção. Os critério de avaliação dependem das métricas de desempenho escolhidas (qualitativas ou quantitativas) mas, em geral, tendem a levar à estabilização do produto a uma situação específica. O espaço para a inovação é pequeno, já que as novidades propostas pelos profissionais da organização podem ser inicialmente rejeitadas pelos usuários.
Insatisfeitos com as limitações das coisas, as pessoas podem subverter seu uso. Hacker, para mim, é toda pessoa que utiliza uma coisa de uma forma que não foi esperada pelos criadores da coisa. Mesmo o ato simplório de colocar bombril nas antenas da televisão pode ser considerado um hack para ampliar a capacidade de recepção de sinais.
A diferença principal entre o hacker e o artesão é que o primeiro não tem acesso ao processo de produção e, portanto, seu poder de modificação do artefato é pequeno. Alguns hacks podem até ser incorporados pelo processo de produção, como no caso do link para responder recados no Orkut, mas a organização não oficializa nem incentiva esse tipo de contribuição. Os hackers são perigosos para as organizações porque não tem nenhum comprometimento com o processo de produção.
Recentemente, algumas organizações estão acreditando que vale mais a pena incentivar o hack de seus artefatos do que proibi-lo, pois a partir de hacks podem surgir inovações interessantes. Como incentivo, publicam as instruções de funcionamento dos artefatos (código-aberto, por ex.), dão suporte para a troca de experiências entre as pessoas que recriam os artefatos (em fóruns de discussão, por ex.) e premiam as melhores recriações (como no exemplo anterior da Mentos).
As organizações que vão mais longe, estão incorporando a recriação no próprio processo de produção, tornando, dessa forma, indissociável do processo de uso. A organização abre mão do poder sobre os artefatos e dá autonomia ao indivíduo, mas ainda almeja canalizar as forças para um objetivo de seu interesse. Alguns projetos de software-livre até ousam abrir esses interesses para a discussão coletiva.
A característica principal da co-criação é que ela se dá na coletividade. Cada pessoa contribui com uma parte maior ou menor de um projeto, mas nenhuma delas recebe o crédito exclusivo de autoria. Ao invés de explorar o lucro de uma cadeia produtiva, a organização se presta a mediar (e de certa forma, liderar) uma rede de co-criadores interconectados.
Nas discussões sobre Web 2.0 que acompanho, fala-se muito de sustentar a geração de conteúdo por usuários, mas pouco sobre a participação de usuários nos processos de produção das ferramentas que publicam o conteúdo e mediam as relações entre os usuários. As pessoas são obrigadas a se adaptar a elas para terem voz, ou seja, não passam de funcionários dos sistemas e também da própria empresa por trás do website, já que ela ganha dinheiro com publicidade associada às suas contribuições.
O Youtube planeja dividir sua receita com os usuários, o Flickr mantém fóruns de discussão sobre sua ferramenta, o Yahoo faz "sessões" de design participativo e o Google observa suas estatísticas de acesso, mas nenhum deles considera de verdade as pessoas como co-criadoras de seus aplicativos Web 2.0. Talvez a dificuldade seja em saber como fazer isso. Existem poucas pesquisas sobre o assunto e poucos exemplos de sucesso. Que tal co-criar essa nova realidade?
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Você pode continuar a desenvolver essa idéia e publicar em algum site, wiki ou blog. Que esse texto sirva para fomentar outros textos, assim como os textos abaixo serviram para fomentar este texto:
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 05.02.2007
Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/de_usuario_a_co-criador.html