Computadores têm fome de dados. Se não são alimentados com dados, não podem retornar outros dados, ficam inúteis. Computador não cria, só computa. Por isso, ele é feito para extorquir o máximo possível de dados de seus usuários que, sob essa ótica, seriam melhor chamados de funcionários.
A expressão "funcionário" é usada por Vilém Flusser em sua Filosofia da Caixa Preta para designar o homem agindo em função dos aparelhos. O funcionário desconhece a origem do aparelho, como ele funciona e como ele se encaixa nas cadeias produtivas da sociedade. Sua função é alimentar o input e colher o output. O programa desse processamento é ignorado, como se acontecesse automagicamente. O funcionário não sabe que ele mesmo faz parte do sistema e que seu comportamento é programado pelo aparelho, pois este só aceita como input dados que são do seu interesse, ou seja, alimentos apropriados.
A intenção incutida no aparelho é, segundo Flusser, induzir os homens a aperfeiçoar o aparelho. O aperfeiçoamento gera novas possibilidades de uso para o homem que o seduz a explorá-las até o ponto em que é necessário mais aperfeiçoamento. O aparelho é um monstro faminto que evolui às custas da sede humana pelo poder de fazer cada vez mais coisas com menos esforço.
A inocência costumaz que os aparelhos nos apresentam foi muito bem capturada pela ilustração de Matthew Hull:
Flusser coloca as coisas nesses termos para chamar a atenção para o despertar da consciência crítica sobre a fotografia que, para ele, seria o aparelho que inaugurou a inversão de domínio do aparelho sobre o homem. Os aparelhos criados desde então foram se tornando cada vez mais complexos e mais desconhecidos do homem, a tal ponto que o homem passou a servir os aparelhos sem se dar conta disso.
Enquanto penso que escrevo no meu computador, o computador está me ordenhando dados, o mercado profissional onde atuo está se apropriando de minhas informações, meus leitores estão usurpando meu conhecimento. Enquanto reflito sobre isso e penso que faço isso em troca de fama ou de dinheiro, o "aparelho social" vai se retorcendo para expelir a próxima recompensa pelos meus serviços prestados. Se meus escritos forem vistos por muitas pessoas, posso até ganhar um aumento.
Claro que posso tentar subverter o sistema exatamente como penso que estou fazendo agora, mas, francamente, quem é que quer subverter o sistema e correr o risco de perder todos os confortos que a sociedade nos oferece para ficarmos em paz?
Flusser foi perseguido durante a guerra e teve que vir morar no Brasil, onde foi relegado a dar aula numa faculdade insignificante. Enquanto vivo, era um ilustre desconhecido. Depois que morreu, sua obra começou a despertar interesse e hoje é autor "quente" no assunto.
Não quero esperar pela morte para ser ouvido. Na verdade, tenho mais interesse em ouvir o que os outros tem a dizer sobre minhas idéias do que em ser ouvido e isso só posso fazer enquanto vivo. Sigo me adequando ao sistema, mas sem deixar de questionar sua lógica. Quem sabe assim eu consigo um cargo político no próximo governo...
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Oi Fred,
Este teu artigo me lembrou de uma discussão que eu vi há tempos atrás, sobre experimentos com ratos de laboratórios. O que se discutia era se quem estava sendo condicionado era o rato ou o cientista. Claro que eram os dois.
Realmente, de modo geral, não temos consciência da "influência" que o ambiente tem sobre nós. E assim vamos "aperfeiçoando o aparelho".
[]s!
Eu nem tinha lido isso antes de conversar, achei o texto perfeito eu adoro :)
fica com Deus Fred
O Flusser é um filósofo bastante crítico e um pouco negativo, mas ele viveu num tempo quando ainda não existia Software Livre. Ele enfatizava muito a importância das pessoas saberem o funcionamento dos objetos que usam, do contrário elas estariam sendo funcionadas pelo objeto da maneira como o objeto foi projetado.
Exemplo: se eu aperto o botão tirar foto da minha máquina fotográfica no modo automático e ignoro todas as outras opções, meu recorte da realidade fica limitado pelas opções default da máquina. Como é uma opção cômoda, a tendência é que eu permaneça usando apenas o modo automático.
Livros como o Não me Faça Pensar vão dizer que isso é ótimo para a Usabilidade, porém, a experiência do usuário envolve outros aspectos além da facilidade de uso. A experiência pode incluir a surpresa e até mesmo o desgosto como uma característica importante. Um filme onde todas as frases são simples e fáceis de usar, onde não há tensão alguma, onde não existe a possibilidade de desgosto é um filme muito chato!
O Antonny Dunne do Royal College of Art se perguntou: será que o design pode ter a mesma densidade cultural de um filme? Aí eles chegaram no Design Crítico, que é uma boa proposta para evitar o que o Flusser identificou.
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