Quando comecei a escrever este blog em 2003, eu prospectei uma qualidade do webdesign que era negligenciada: a usabilidade. Ao redor desta qualidade, diversas outras qualidades foram agregadas ao longo dos anos, formando a base do que hoje é conhecido como experiência do usuário (ExU).
Muitas pessoas aprenderam sobre as qualidades da experiência do usuário comigo, porque nessa época não havia muitas referências, nem mesmo no mercado, para poder aprender junto. Eu traduzia aquilo que eu aprendia na academia para aquilo que eu achava que poderia se tornar as bases para uma futura profissão especializada. Na época, diversas pessoas me disseram que não haveria necessidade de especialistas no assunto no Brasil.
Eu acreditava que era, principalmente, uma questão de interação. Prospectei um design de interação brasileiro e acabei encontrando o ExU design. Minha prospecção não foi perfeita, mas ajudou diversas gerações de designers a encontrarem seu rumo.
Nos últimos 3 anos, estou percebendo que há uma nova possibilidade de expansão da atuação de designers na nossa sociedade. Designers podem, se quiserem, ampliar seu repertório para lidar com novas qualidades, que vão muito além da experiência do usuário.
Vivemos um mundo de crises recorrentes, com intensas contradições que precisam ser compreendidas e administradas pelas organizações de pequena e larga escala. Mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global são apenas algumas das consequências das contradições dos nossos modos de viver em sociedade. Um problema capcioso leva ao outro e passa-se da questão ambiental para a questão social rapidamente.
Experiências de uso de alta qualidade não resolvem esses problemas capciosos. É preciso transformar as relações sociais que dão origem a essas experiências, ou seja, é preciso ir bem mais a fundo para projetar a transição necessária.
Observando essa necessidade, eu e mais um grupo de professores da UTFPR criamos uma proposta de uma nova área de atuação que chamamos de Design Prospectivo. Encaminhamos ao Ministério da Educação uma proposta para um novo curso de mestrado em 2019. Ela foi rejeitada, juntamente com a maioria das propostas das outras universidades. De 2020 a 2021, o Ministério da Educação paralisou a abertura de novos cursos em função da pandemia. Agora em 2022, vamos tentar novamente. O vídeo abaixo gravado com os colegas Cayley Guimarães e Fernanda Botter expressa nossa visão compartilhada.
Para entender onde queremos chegar, é preciso voltar à história do Design, lá nos anos 1950, quando Raymond Loewy, um dos pioneiros do Desenho Industrial estadunidense, dizia que o design deveria ser MAYA: Most Advanced, Yet Acceptable. Esse acrônimo serve para nos lembrar que design não é nunca uma reprodução de uma estrutura atual. Se for uma cópia ou adaptação de algo que já existe, não é design. Design é uma prática profissional orientada a criação do novo, ainda que aceitável.
O novo para Loewy eram as mudanças formais possibilitadas pelas técnicas de produção industrial. O movimento de styling ao qual Loewy fez parte mudava as formas tradicionais dos produtos para ele adquirissem um significado social ou individual novo. A partir dessa prática, foram criados carros e eletrodomésticos com formas inusitadas, às vezes até sacrificando as qualidades de segurança e conforto já conhecidas pela ergonomia e fatores humanos. Tudo se justificava pela inexplicável sensação de bem estar proporcionada pelo design estiloso.
Esse era um processo muito específico daquela época e de alguns poucos países desenvolvidos que podiam se dar ao luxo de consumir em larga escala. Havia uma demanda de consumo grande, uma capacidade de produção grande, coisa que foi se perdendo conforme a crise do petróleo se instaurou nos anos 1970. Desde então, passou a imperar a doutrina minimalista de Dieter Rams e outros em relação ao estilo no design.
Diversas abordagens de design já questionaram o minimalismo do design e seu foco em qualidades formais. A qualidade de usabilidade, por exemplo, trouxe uma compreensão mais processual de design que tem a ver não como as coisas se parecem, mas como elas funcionam na prática. Porém, o momento atual nos impele a ir além das coisas em si para compreender as coisas relacionadas com outras coisas.
O objetivo do nosso Design Prospectivo é formar profissionais capazes de capturar e lidar com as novas qualidades que surgem dessa multitude de coisas relacionadas, a que chamamos de sistemas sociotécnicos.
O que seria um sistema sociotécnico? Em sua essência, é uma série de relações entre diferentes coisas. Então, você tem uma coisa de um lado, uma coisa do outro e uma relação no meio. E a relação é que é interessante no sistema sociotécnico.
Para compreender um sistema sociotécnico como a mobilidade urbana, é preciso considerar uma série de coisas. Não basta olhar para o carro para entender a mobilidade. É preciso considerar o papel fundamental dos postos e toda a rede de combustíveis, as fábricas que produzem os diversos equipamentos e peças desses carros, assim como os diversos tipos de motoristas e passageiros e também das pessoas que fazem a manutenção desses automóveis. Também existem pessoas que alugam, que usam carros de diferentes maneiras.
Em volta do carro há uma série de relações e atores, porém, se continuarmos expandindo nosso escopo, começamos a descentralizar a imagem daquele objeto da rede. Surgem novas coisas, às vezes até mais importantes como o governo, que eventualmente define Leis e políticas públicas para a mobilidade, os desenhos e planejamentos urbanos e a infraestrutura viária. Todos esses atores e coisas fazem parte do que a gente chama de sistema de mobilidade urbana e nenhuma coisa pode ser considerada suficiente em si.
Se alguém quiser mudar um elemento do sistema sociotécnico, como por exemplo, trocar o combustível por energia elétrica, será preciso considerar todas as relações diretas e indiretas que esse elemento tem com todos os outros no sistema.
Por isso é tão difícil fazer uma transição para um modelo de mobilidade baseado em combustíveis renováveis. Não é suficiente projetar um carro bacana com um motor mais eficiente movido a eletricidade. É preciso mudar os diversos elementos da rede. Do contrário, a inovação morre no nicho.
Porém, mudanças em sistemas sociotécnicos não acontecem da noite para o dia. Não é viável e nem interessante para os atores envolvidos destruir tudo e começar do zero, a não ser que um dos atores prefira o caminho da guerra. A mudança pacífica é gradual e começa nas relações entre as coisas relacionadas.
Novas relações surgem de maneira espontânea quando os diferentes atores e coisas começam a trocar alguma coisa que não trocavam antes. Novas relações também podem ser projetadas profissionalmente tal como fazemos com objetos de design. Porém, esse tipo de projeto não funciona por uma lógica de determinação e sim por uma lógica de prospecção. Um projeto de transição que prospecta futuros precisa estar aberto ao desenvolvimento e mudanças nas relações em que se deseja mudar. Prospectar não é o mesmo que prever, assim como projetar não é o mesmo que controlar.
Tomemos como exemplo, as mudanças recentes nos sistemas de mobilidade associadas à introdução dos serviços digitais ubercapitalistas. Esses aplicativos mudaram não só a relação entre passageiro e motorista, mas também a relação de um cidadão com a sua própria cidade. O usuário de Uber, dependendo do caso, pode não precisar mais ter um carro para poder aproveitar as melhores oportunidades que a cidade oferece.
Ubercapitalismo promove mudanças mais amplas nas relações econômicas, políticas e trabalhistas que não vale à pena entrar em detalhes aqui. O ponto é que trabalhar com relações significa lidar com uma temporalidade mais ampla do que estamos acostumados nas disciplinas de design consolidadas hoje no mercado e na academia.
A temporalidade do design na época de Raymond Loewy era a temporalidade da informação, por isso, a forma que expressava a informação precisava mudar com frequência. Se um design não era compreendido em minutos, ele podia não servir para nada.
Quando o design começou a se preocupar com as qualidades da experiência do usuário, a temporalidade aumentou um pouco. Uma experiência poderia durar horas e poderia ser mais intensa e significativa para a vida de uma pessoa do que consumir uma informação.
Além da experiência, podemos considerar as interações entre as pessoas como algo mais amplo, que se desenrola ao longo de meses. As redes sociais trabalham nessa temporalidade. Ainda compreendemos pouco sobre essas qualidades interacionais, mas já sabemos como é possível lucrar com isso.
Já a temporalidade da relação, que é o foco do Design Prospectivo, esta pode durar anos. Ainda sabemos pouco sobre as qualidades relacionais e o que podemos fazer com elas além de lucrar. Podemos projetar então, para a qualidade sem nome enquanto ainda não temos definições conceituais. Porém, o difícil mesmo no Design Prospectivo é encarar a mudança de temporalidade.
Trabalhar com a escala do ano em projetos de design não é muito comum, uma vez que os próprios projetos duram semanas ou quando muito alguns meses. Porém, acredito que essa expansão temporal é necessária e vai acontecer para que as transições nos sistemas sociotécnicos ocorram e possamos viver em uma sociedade mais sustentável, justa e democrática.
Nota de agradecimento: Este texto é o primeiro derivado da transcrição de uma palestra realizada pelo meu ex-aluno Felipe Araujo de Miranda Gomes, a quem sou muito grato.
Este texto faz parte de uma série sobre Design Prospectivo. Veja os demais:
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