Virtualidades comunais e prazeres complicados

Tiago Baeta me convidou a escrever uma crônica original para o livro Internet: O Encontro de 2 Mundos. Escrevi uma crítica ao informacionismo, que apresenta a Internet como fonte de informação, argumentando que seu uso não é motivado pela informação e sim pelo prazer que a informação e outros recursos podem dar ao usuário.

O livro (R$38 no Submarino) contém outras dezenas de crônicas bem interessantes, sobre assuntos variados. Abaixo, para o prazer do leitor (ou não!), disponibilizo minha crônica, na íntegra.

No início da Internet falava-se muito de comunidades virtuais. Acreditava-se que por meio da rede era possível criar novos mundos, sem fronteiras, preconceitos ou conflitos, movidos pelo fluxo de informações e organizados por regras de interação. Quanto mais popular a rede se torna, mais a utopia cibernética empalidece. O que as pessoas querem não é informação e sim prazer e estão dispostas a burlar regras para obtê-lo.

Lembro-me a primeira vez que acessei a Internet do meu quarto de adolescente: eu queria baixar jogos; num segundo momento, eu queria criar websites; num terceiro, eu queria trabalhar com isso. Tudo isso pelo prazer, não pela informação. Linus Torvalds criou o Linux pelo mesmo motivo: Just for Fun. Ele não tinha nenhuma ambição política, mas se tornou um “revolucionário acidental”, assim como tantos outros que contribuíram para o projeto. 

Se engana quem acha que nerds são pessoas estranhas que sentem prazer em se relacionar com máquinas. Embora não aparente, o nerd é um animal social tanto quanto os demais seres humanos. Quando está solitariamente escrevendo poesia, compondo música, criando jogos, codificando softwares ou “hackeando” bancos de dados, ele interage com outras pessoas indiretamente através de seu material (linguagens, códigos, ferramentas). O nerd fascina-se pela presença humana nos objetos: sua lógica interna, seus detalhes, sua expressividade.

Mas não são apenas nerds que sentem prazer na interação mediada. As tecnologias de comunicação pessoal hoje são utilizadas em todos os estratos da sociedade. Do cego que usa o email para mobilizar seus colegas ao advogado que “solta a franga” no fórum gay, todos sentem muito prazer em interagir com pessoas queridas e pessoas não tão queridas pela Internet. 

O hedonismo generalizado é produto da indústria cultural. Na literatura, no cinema e na televisão, a busca pelo prazer é apresentada como motivação para viver. Então, a indústria de bens produz diferentes objetos para alimentar a busca, eventualmente inserindo suas ofertas na programação cultural – o famoso merchandising. Até aqui, o hedonismo parece fazer parte de uma estratégia de manipulação e desarticulação das massas através da administração de ofertas e demandas de consumo, mas, se prosseguimos na análise, veremos que também se trata de uma reação do indivíduo a uma coletividade com a qual ele não se identifica mais. No livro Consumidores e Cidadãos, Néstor García Canclini chega à conclusão de que as comunidades transnacionais de consumidores de uma determinada marca são muito mais interessantes para o indivíduo do que as comunidades imaginadas nacionais. Através do consumo, o indivíduo supera determinações geográficas de identidade e adquire o status de cidadão global. 

É por isso que a Internet está bombando. Se os meios e comunicação anteriores já permitiam a identificação com tais comunidades globais, agora é possível que cada pessoa exiba suas filiações, interaja com outras que compartilham a filiação e crie novas filiações. No Orkut, existem milhares de comunidades criadas pelos usuários — de criadores de canários belgas a fãs de Chico Xavier — e cada um se inscreve em dezenas delas. É possível trocar mensagens pelas comunidade, mas, na maioria das vezes, a participação se limita a acrescentar a comunidade no perfil. “É como mostrar o álbum de figurinhas”, diz Michel Lent Schwartzman. 

As comunidades do Orkut e de outras plataformas na Internet não correspondem necessariamente a verdadeiras comunidades, no sentido sociológico. As pessoas que se filiam muitas vezes não estão dispostas a se submeter ao interesse da coletividade; elas se encontram apenas porque, por acaso, compartilham alguns objetivos que a comunidade ajuda a alcançar. Comunidades “virtuais” não existem. Existem comunidades que se apropriam da Internet para se comunicar e comunidades que se formam a partir das possibilidades que a Internet oferece, mas elas tem tanta carne e tanto osso quanto aquelas que nunca usaram a Internet. 

Fóruns de discussão não formam comunidades; comunidades é que formam fóruns de discussão. Pode ser que antes do fórum a comunidade estivesse dispersa, mas já existiam os elementos que a configuravam como comunidade: senso de pertencimento, objetivos comuns, história compartilhada, cultura, etc. O fórum pode se tornar um espaço para que os membros realizem e atualizem estes elementos, mas ele não é capaz de criar estes elementos; quem cria são as pessoas. É por isso que existem tantos fóruns de discussão às moscas na Web. Eles foram construídos na esperança de que uma nova comunidade se formaria em torno dele ou que uma comunidade existente se apropriasse do espaço, como se o fórum fosse a ferramenta de comunicação mais apropriada para a comunidade. Às vezes, a tentativa dá certo, às vezes não. 

Estatísticas indicam que a porcentagem de usuários que contribuem ativamente para fóruns e outras ferramentas de colaboração na Web é muito baixa. Isso acontece porque a maioria das pessoas não está interessada em fazer parte da comunidade, mas sim em compartilhar algumas virtualidades. Querem informações, emoções, reconhecimento ou dinheiro que tragam prazer para si. Estão dispostas a dar algo em troca se for necessário, mas não querem se envolver demais com esta comunidade específica. Por vezes podem parecer generosas, como o garoto que responde todas as perguntas num fórum de discussão técnica, mas a motivação se resume ao prazer de aceitar desafios e ser reconhecido por cumpri-los.

As pessoas não são sempre egoístas nas interações sociais, entretanto. Acontece que cada um se identifica com algumas comunidades e com outras não. Na medida em que uma pessoa sente que faz parte de um grupo, o grupo passa a fazer parte da pessoa, ou seja, a identidade do indivíduo se constitui a partir das referências coletivas com as quais o indivíduo se identifica. Aí os interesses coletivos passam a ser também interesses individuais. Se o outro faz parte desse coletivo, então o indivíduo é altruísta na interação social, senão é egoísta. Pode-se dizer que, no fundo, este altruísmo é uma espécie de egoísmo coletivo: “só faço aquilo que me faz bem ou faz bem ao meu grupo”. 

A raiz desse egoísmo está no prazer. Por mais altruísta que pareça uma determinada interação social, a motivação é egoísta enquanto focaliza o prazer. Quem faz o bem pelo prazer de fazer o bem é, portanto, tanto egoísta quanto altruísta. Complicado não? Pois é. O homem moderno (e também a mulher moderna) é um sujeito complicado mesmo. Sonha com uma sociedade perfeita mas se aproveita da desigualdade social; admira a natureza, mas explora irracionalmente seus recursos; desconfia de Deus, mas reza quando sofre.

É por isso que a utopia cibernética se demonstrou impraticável. As pessoas não estão dispostas a abdicar do prazer e da identidade em troca de uma vida pretensamente perfeita. O governo das máquinas só seria possível se fosse capaz de nos suprir de prazer e identidade, mas, para isso, as máquinas teriam que se tornar também complicadas como nós. Por enquanto, os personagens maquínicos e contraditórios do clássico Matrix — Arquiteto, Oráculo, agente Smith — existem apenas na ficção, mas, mesmo na ficção, os homens se rebelaram contra eles. Somos mesmo muito complicados...

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Internet: O Encontro de 2 Mundos

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 31.08.2008

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