Rituais e design de interação

Acabo de voltar da segunda aula de Rituais e Simbolismo e estou convicto de que minha incursão pelo curso de Antropologia não foi em vão. Usar o computador pode não parecer, mas perante a teoria contemporânea dos ritos, é de certa forma um ritual.

Seria só uma piada sem graça, se estivesse me referindo apenas aos procedimentos estritos (e às vezes incompreensíveis) que o computador nos obriga a realizar. Alguém se lembra da árdua tarefa de fazer rodar um simples jogo na era do DOS?

1. Editar o Config.sys e habilitar o Emm386.exe
2. O Emm386.exe comeu a memória convencional, agora é preciso liberar memória carregando o driver do CD-Rom na memória estendida
3. Tudo certo com a memória, mas temos problemas com a placa de vídeo. É preciso saber o chipset dela. Será Trident 8800CS ou Trident 8200LX? Pra saber só abrindo a CPU e anotando o código que estaria em um dos chips ao lado de outros tantos códigos parecidos
...

Porque isso é um ritual? Porque trata-se de um procedimento repetitivo em que se manipulam símbolos culturalmente definidos de forma padronizada.

Os engenheiros que criaram esse terreiro digital não imaginavam que tais símbolos seriam tão abstratos para os usuários do PC. "Bah, todo mundo entenderá num golpe de vista que o Emm386.exe é um Extended Memory Manager destinado aos chips Intel 80386," pensaram os esnobes engenheiros.

O fato é que criaram um ambiente tão abstrato que somente os inclinados a linguagens cabalísticas se aventurariam a fazer os despachos.

Ainda sinto nostalgia da época em que ganhei um XT, quando tinha 10 anos. No começo, era tentador o desafio de dominar aquele espaço. Com o tempo, passou a se tornar rotina e quando podia fazer algo da forma mais fácil, eu fazia.

Segundo a teoria dos rituais, quando a natureza transformadora do ritual não é contemplada, ou seja, quando não atualiza a realidade, ele se fossiliza e acaba por desaparecer.

O DOS era antiquado e não tinha flexibilidade que tinha um sistema Unix, por exemplo. Fossilizou. O Unix permanece até hoje em determinados nichos, aos poucos se renovando.

Aliás, em matéria de simbologia, o Unix é muito mais rico. Os comandos são ainda mais abreviados que no DOS, veja:

DOS > Unix
dir > ls
copy > cp
del > rm

Qual é a vantagem de memorizar um comando mais curto e menos direto? É mais mágico no seu contexto.

A semiótica nos ensina que a efetividade de um símbolo depende apenas da convenção. Se ele é aceito pelo grupo social com o significado a que ele foi atribuído, então ele tem sucesso. Isso significa que tanto faz se é "copy" ou "cp", o que importa é se o termo é aceito por todos.

Ambos foram aceitos em seu contexto, porque afinal de contas não havia escolha. Mas, o conjunto de comandos do Unix ainda sobrevive no seu nicho.

O pessoal que curte um frontend em linha de comando sente uma sensação de controle muito forte. Tanto que não desgrudam um segundo do teclado, mesmo se a aplicação oferecer a possibilidade de usar o mouse. "Com o teclado é mais rápido", disse um amigo meu. Parece mais rápido mas não é.

Quando ele usa um editor de texto, um "vi" no jargão deles, tem que apertar diversos atalhos no teclado para movimentar o cursor e realizar tarefas simples como copiar e colar. Só o tempo para encontrar as teclas certas e afinar o acorde já leva muito mais do que simplesmente apontar o mouse. É claro que existe um pequeno lapso entre soltar o teclado e ir pro mouse, mas meu amigo não quer perder a sensação de controle. Isso levaria uma eternidade no tempo dele, pois durante esse pequeno lapso sua mente estaria parada.

Já vimos num post antigo que é possível controlar até certo ponto a percepção do tempo pelo usuário através de entretenimento, no caso de preloaders. Vale lembrar que essa idéia veio de um artigo de Bruce Tognazzini que compara o Designer de Interface com um Mágico de circo.

Novamente, voltamos ao ponto da magia. Esse assunto costuma atrair humanistas e espantar engenheiros. A magia não é como a ciência, que apresenta resultados previsíveis. Ela é tão variável, que se alteramos apenas um dos ingredientes, a poção desanda e se torna veneno ou néctar. Os segredos dos alquimistas não podem ser inseridos em banco de dados, não são racionalizáveis.

Já prestou atenção num cozinheiro experiente fazendo uma sopa deliciosa? Embora receitas possam ser inseridas em banco de dados, eles não as seguem estritamente. Na verdade, se você perguntar exatamente qual a quantidade de óleo que ele pôs, ele não saberá dizer. É o que a Gestão do Conhecimento chama de conhecimento tácito.

Esse conhecimento não pode ser transferido da mente de um indivíduo para o outro. Precisa ser traduzido em símbolos eficazes para sair de uma mente e entrar em outra. Isso pode ser feito numa conversa descontraída, num ambiente formal de trabalho, numa sala de aula ou, tchan, tchan, tchan, num ritual.

A vantagem do ritual perante as outras formas de transmissão de conhecimento é a imersão que ele promove. Em geral, trata-se de uma assembléia de diversos símbolos manifestando-se por diversos meios. Pense em alguns dos símbolos presentes num ritual religioso como a Comunhão:

- a roupa do sacerdote
- o cálice dourado cheio de vinho
- os pedaços de pão seco
- o ambiente
- a história que está por trás

Tudo isso são símbolos carregadíssimos de significado. Cada vez que se passa por um ritual como esse, se tem uma realização diferente, devido à riqueza de significados que os símbolos combinados podem resultar. Isso não é bom ou ruim, isso é efetividade na comunicação de uma determinada mensagem.

Ainda sinto falta da época em que os videogames vinham em cartuchos. Quem nasceu antes do Playstation sabe do que estou falando. O cartucho era robusto, de fácil manipulação, podia até sujar de geléia. Para colocá-lo no console era preciso certa perícia e força e um pequeno estalo parabenizava o jogador pela boa encaixada. Se o game não iniciasse, retirava-se o cartucho e assoprava-se os contatos. Na pior das hipóteses uma pequena batida dava conta do recado. Parece mágica, mas isso fazia realmente o Mario Bros aparecer de novo.

Compare com os consoles de CD e note como o ritual é mais pobre. Abre-se a caixinha do CD, coloca-se na bandeja, fecha e pronto, o game está carregando. Se não der certo, não há muito o que fazer. CD riscado vai pro lixo.

As bandejas desses consoles poderiam pelo menos ser como as bandejas dos primeiros drives de CD-rom do PC. Quando se apertava o botão de ejetar do driver 2x da Mistumi, o drive saia inteiro pra fora do micro e era preciso abrir uma tampa interna para poder colocar o CD. Esse receptáculo valorizava o CD, que na época ainda era bonito de se olhar, e tornava a experiência de trocar o CD um pouco mais lúdica, já que a bandeja parecia um objeto de ficção científica.

No ambiente de trabalho, tempo é dinheiro, e a bandeja estrambótica sucumbiu. Mas, no entretenimento, o que vale é a diversão. Não testei com usuários, mas acho que daria certo.

Mas mesmo em ambientes de trabalho, se podemos enriquecer a experiência de uso de softwares com símbolos bem amarrados, isso pode ter impacto positivo na usabilidade. O apressado já pensa em encher de ícones, o criativo pensa em encher de metáforas e o perspicaz entendeu que o que o usuário precisa é de significados.

O Photoshop é um software carente de rituais, mas tem uma ferramenta ali que tem significado especial para mim. Costumo brincar junto com amigos aplicando o filtro "liquify" ("derreter") nas fotos de conhecidos. É um ritual pra lá de engraçado mas não seria tão divertido se tivesse que usar o Corel Photopaint.

Filtro Liquify do Photoshop

Note como no Photoshop basta arrastar o cursor para distorcer a foto. Até mesmo os amigos que não se dão bem com o PC não resistem à brincadeira. Os controles não oferecem precisão, mas quem se importa com isso?

Filtro Textura de Malha do PhotoPaint

No Photopaint, uma malha de linhas cobre a foto e podemos arrastar apenas os vértices da malha para distorcer a imagem. Mais preciso e mais rápido, mas muito mais chato.

A diferença principal está no significado das ações. No Photoshop, a manipulação é direta, o usuário se sente realmente distorcendo a face do amigo. Quem é que não gostaria de ter esse poder no mundo real? Tal experiência lúdica traz grande prazer.

No Photopaint, a manipulação é indireta e, portanto, menos familiar. Se ninguém lhe contar, o usuário levará algum tempo até perceber que o primeiro passo é arrastar um dos vértices da malha porque esse significado não está explícito nem implícito. É algo que só poderá ser descoberto mediante exploração do tipo clica-em-tudo-e-vê-no-que-dá e isso não é nada divertido. Finalmente, o usuário se dá conta de que não pode tocar na imagem e alongar o nariz do retratado, que é seu objetivo. Ele só pode tocar a maldita grade que fica sempre na frente da imagem.

O sucesso do Photoshop não está em usar um pincel ao invés de uma malha, mas sim no significado que o modelo de interação tem: a manipulação direta da imagem. O Photopaint pode ter mais usabilidade, mas meus amigos preferem o ritual proporcionado pela Adobe.

Passemos então, designers de experiências interativas, a estudar os rituais, sem ceticismo ou juízo de valor. Um ritual não é inócuo, bom ou ruim. Se transmitir algum significado, será eficiente e é isso o que importa.

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 22.03.2005

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