Prospectando qualidades relacionais

O Design Prospectivo não traz novidades só do ponto de vista de escopo de projeto, mas também implica em uma nova estética. Se as qualidades da experiência do usuário demonstraram que estética não precisa necessariamente estar associada ao que é visível, as qualidades relacionais do Design Prospectivo vão mostrar que existe beleza e feiura na maneira como as coisas se relacionam em sistemas sociotécnicos.

Na experiência do usuário, designers costumam considerar primeiramente as qualidades de cada coisa, os chamados ponto de contato. Designers observam e perguntam aos usuários: esta interface é fácil de usar? Depois, designers consideram as qualidades que emergem das transições entre um ponto de contato e outro. Será que este ponto de contato tem informação sobre como foi a interação em outro ponto de contato ou será que é preciso gerar um novo registro do cliente?

Cada interação com um ponto de contato gera uma percepção individual relativa àquele ponto de contato. Enquanto usuário, você pode sentir que a interface do ponto de contato é lenta ou rápida. Porém, após interagir com diversos pontos de contato e com outros usuários, você tem uma sensação mais ou menos padronizada de como são os pontos de contato. Isso gera uma expectativa em relação à qualidade das coisas com que você interage. Se você se acostuma a interagir com rapidez em um ponto de contato, espera que o próximo tenha essa mesma qualidade, por exemplo.

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Uma estratégia comum no Design de Serviços é compensar a baixa qualidade de vários pontos de contato com a alta qualidade de um ponto de contato central. Aplicativos móveis e centrais de atendimento tentam recuperar usuários insatisfeitos com outros pontos de contato. Espera-se que a sensação geral, a gestalt da interação, seja influenciada pela qualidade de um ponto de contato principal, embora isso nem sempre aconteça.

No Design Prospectivo, ao invés de centralizar a qualidade estética em uma coisa, buscamos perceber de maneira distribuída as qualidades que emergem a partir das relações entre os diversos pontos de contato. Na verdade, vamos além da estruturação de um projeto como uma série de pontos de contato e consideramos diversos outros tipos de relações entre pessoas e coisas. Quando a qualidade relevante muda da coisa para a relação entre coisas, temos então uma estética relacional.

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Não se trata apenas de explorar o que está abaixo da linha de visibilidade do usuário, ou seja, os processos que acontecem nos bastidores do serviço. Trata-se de tornar visível as metaestruturas e infraestruturas comuns a diversas organizações, enfim, compreender o sistema sociotécnico como um todo.

Vejamos um exemplo de um projeto de pesquisa que eu e meu orientando João Victor Tarran conduzimos em parceria com a Bosch e sua unidade Connectory Curitiba. Nós fizemos o mapeamento do ecossistema de Internet das Coisas no Brasil e procuramos o lugar da Bosch: quem são os atores mais próximos da Bosch? Quais são os atores que a Bosch deveria estar mais próxima para dinamizar esse ecossistema? Quais são as qualidades que emergem das relações que a Bosh tem com esses atores? Sinergia ou fragmentação?

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Em 2019, a Bosch estava muito focada em cultivar relações para adquirir inovações através da compra de empresas e serviços. Percebemos que isso provocava uma qualidade indesejada nas relações: a competitividade entre os atores, que lutavam entre si para ver quem conseguia se vender melhor. Como a Bosch desejava nutrir um ecossistema pujante baseado na colaboração baseado na estratégia de Inovação Aberta, era preciso mudar a estratégia de posicionamento no ecossistema.

Nossa pesquisa foi fundamental para perceber que a Bosch precisava investir mais em processos de saída de inovações, balanceando seu fluxo de Inovação Aberta. Além de comprar do ecossistema, a Bosch precisava vender mais. Além de receber ajuda, a Bosch precisava ajudar outros atores. Além de lucrar com o ecossistema, a Bosch precisava investir no ecossistema. Em suma, a relação da Bosch com o ecossistema precisava ser mais sustentável.

Sustentabilidade é uma qualidade popularmente associada à relação entre seres humanos e outros seres da natureza. Porém, ela pode ser percebida também nas relações entre seres humanos. Se uma relação humana não é sustentável, ela se desfaz com o tempo. Dificilmente uma relação humana insustentável gera relações sustentáveis com outros seres da natureza. Por isso tratamos problemas ambientais como problemas capciosos no Design Prospectivo.

Apesar de ser fundamental para a existência humana, a sustentabilidade nem sempre é percebida e valorizada, pois não é uma qualidade fácil de perceber. Como ela depende das relações e não das coisas em si, é difícil olhar para um ecossistema e dizer se ele é sustentável ou não.

Design Sustentável é uma área profissional que visa, dentre outras, tornar a sustentabilidade mais visível para o consumidor através da escolha de materiais reciclados, biodegradáveis ou com menor impacto de extração. Dessa maneira, o consumidor pode ver a diferença no produto e escolher uma opção mais sustentável.

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Porém, o que parece sustentável nem sempre é de fato sustentável. Muitas empresas adotam uma aparência sustentável apenas para explorar um perfil de consumidores. Por exemplo: o material da embalagem é reciclado, mas o produto continua sendo tóxico, testado em animais e produzido com mão de obra precarizada.

O greenwashing é uma contradição que surge pela tentativa de mudar um sistema sociotécnico a partir de uma única coisa, de um único produto. A sustentabilidade das relações não muda radicalmente quando de substitui uma única coisa. Na verdade, não é preciso substituir coisa nenhuma, mas sim alterar as relações entre as coisas.

Por exemplo: a crise hídrica brasileira, que atingiu seu pico em meados de 2021. Não basta diminuir o consumo doméstico de água se as grandes indústrias e o agronegócio continuam utilizando água potável para resfriar máquinas e limpar granjas. Não basta construir mais represas nos rios se o cerrado que absorve a água das chuvas continuar sendo desmatado em ritmo galopante.

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Quando a qualidade da sustentabilidade atinge níveis críticos, é comum os atores tentarem resolver os problemas apenas nas suas relações mais imediatadas, o que pode funcionar como um improviso, mas que não altera a qualidade proveniente de diversas relações ligadas ao ecossistema.

As qualidades relacionais são mais difíceis de evidenciar em um projeto, mas não são menos importantes e nem menos impactantes na vida das pessoas que dependem do sistema sociotécnico em questão. Por isso, é preciso fazer o trabalho político para mudar as qualidades relacionais.

O filme Quem matou o carro elétrico (2006) conta a história de um projeto de carro elétrico da GM, um dos maiores fabricantes de carros do mundo responsável pela marca Chevrolet no Brasil. O EV1 foi um dos primeiros carros elétricos lançados no final dos anos 1990 que tinha tudo para dar certo: vendia bem, tinha consumidores felizes e era eficiente. Porém, os executivos da empresa duvidaram que a inovação fosse capaz de sair do nicho e entrar no regime e resolveram matá-la antes disso acontecer.

Para entrar no regime, não era suficiente ter o carro. Era preciso ter toda a infraestrutura de abastecimento e manutenção. Os executivos da GM que mataram o carro elétrico julgaram que a empresa não daria conta de construir toda a infraestrutura e não imaginavam que outros atores poderiam ver isso como uma oportunidade de negócios.

A maneira de fazer negócios baseada na integração vertical a inovação fechada tem sido substituída por uma abordagem de colaboração e inovação aberta. Tomemos como exemplo, a companhia de energia elétrica do Paraná, a Copel, uma empresa que está experimentando essa estratégia para estimular a transição para uma matriz energética mais diversificada.

Em 2019, a Copel inaugurou uma eletrovia com postos de abastecimento elétrico de alta velocidade. Nessa época, ainda não eram produzidos veículos elétricos no país, mas a empresa desejou assim mesmo mostrar que a mudança precisa começar de algum lugar. Já em 2021, ela lançou um programa de compartilhamento de carros elétricos em parceria com a Renault. A Renault, por sua vez, tem investido em startups relacionadas à mobilidade elétrica.

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Vários lugares do mundo estão buscando fazer essa transição para a geração distribuída, sistemas de distribuição de energia baseados em dados dinâmicos. Nesses sistemas, qualquer consumidor pode se tornar também um produtor, bastando instalar placas fotovoltaicas no telhado da sua casa. Dependendo do potencial energético da região, o consumidor pode, em alguns meses do ano, produzir mais energia do que gasta, recebendo uma remuneração do sistema por isso. O documentário Mundo Escondido (2020) explica isso bem.

O Brasil já possui políticas públicas para que isso aconteça, porém, essa transição não pode acontecer de uma hora para a outra. A produção distribuída ainda não é tão eficiente e barata como a produção centralizada. Se o sistema inteiro mudasse da noite para o dia, a energia ficaria mais cara e inacessível para a população de menor renda. Por outro lado, se o sistema não mudar, continuaremos dependentes da energia gerada por hidrelétrica, que se vê ameaçada pela crise hídrica, ligada às mudanças climáticas e ao desmatamento.

Aqui temos um caso que demonstra que as qualidades relacionais se relacionam umas com as outras, em um nível de complexidade maior do que nas relações do sistema sociotécnico. No caso da transição para geração distribuída, a sustentabilidade está relacionada com outra qualidade relacional: a justiça social. Em um país onde uma grande parte da população experimenta a pobreza energética, é fundamental considerar essa qualidade em conjunto com a sustentabilidade.

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A beleza de um projeto de transição está, portanto, relacionada à maneira como esse projeto prospecta e descobre qualidades relacionais que emergem do sistema sociotécnico. As qualidades relacionais produzem efeitos estéticos que não são tão fáceis de perceber, mas são muito mais duradouros e valiosos do que àqueles produzidos pelas coisas isoladas. Aqui neste texto, destaquei a sustentabilidade e a justiça social, mas existem inúmeras outras qualidades relacionais, inclusive muitas que ainda não foram nem descobertas. O Design Prospectivo abre, portanto, um espaço de possibilidades estéticas para aqueles que são capazes de perceber formas abstratas, simbólicas e temporais.

Nota de agradecimento: Este é o terceiro texto derivado da transcrição de uma palestra realizada pelo meu ex-aluno Felipe Araujo de Miranda Gomes, a quem sou muito grato. Ajuda para transcrever outras palestras e aulas são sempre bem vindas!

Série

Este texto faz parte de uma série sobre Design Prospectivo. Veja os demais:

  1. Projetos de transição
  2. Problemas capciosos requerem soluções éticas e graduais
  3. Prospectando um Design Prospectivo
  4. Rumo à Quarta Ordem de Design
  5. Prospectando qualidades relacionais

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 07.02.2022

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