Design é frequentemente definido como "solução de problemas". Eu acho essa definição vaga demais, uma vez que diversas outras atividades e profissões também solucionam problemas. Que diferença o design faz? Seria um jeito específico de solucionar problemas ou um tipo específico de problemas que só ele soluciona? Ou seria algo a mais que o design acrescentaria à solução de problemas?
Minha definição de design é bastante ampla: design é a síntese das múltiplas definições de design. Sendo assim, todas essas possibilidades de diferenciação são válidas. Apesar disso, reconheço que a maior diferença que o design produz enquanto atividade social está no enfrentamento de um tipo de problema específico: o problema capcioso, também traduzido como problema perverso (wicked problem).
Grosso modo, existem dois tipos de problemas na teoria do design: os problemas capciosos e os problemas domesticados. Os problemas domesticados (tamed problems) são aqueles para os quais já se conhece uma solução definitiva ou satisfatória. Mesmo que seja difícil essa solução, alguém em algum lugar já solucionou esse problema e existe, portanto, um conhecimento que pode servir de recurso.
Por exemplo, "o usuário pode pesar mais do que 100 kg" é um problema domesticado para o projeto de uma cadeira, pois já existem uma série de estruturas que podem ser utilizadas para resistir a tal peso. Até mesmo o problema de criar uma cadeira para um usuário de 200 kg é um problema domesticado, pois basta reforçar as estruturas com o que já se sabe a respeito do assunto.
Compare tal problema com o problema do sedentarismo em estações de trabalho: as pessoas precisam ficar horas trabalhando em frente a um computador, fisicamente imóveis e mentalmente ágeis. Como projetar uma cadeira para esse tipo de trabalhador que não cause desconforto e ao mesmo tempo não o faça dormir? Esse não é um problema encurralado. Trata-se de um problema capcioso que surge da contradição do conforto.
Quando se tenta solucionar um problema capcioso, ele apresenta novos problemas e por isso é chamado de capcioso. Se você projeta uma cadeira rígida demais, alcança o grau de atenção necessário para o trabalho, mas provoca dores nas costas. Se você projeta uma cadeira mole demais, o usuário relaxa, mas isso também gera dores nas costas além de diminuir a atenção. A verdade é que o corpo humano ainda não se adaptou (ou evoluiu) para a ergonomia insólita do trabalho computadorizado e qualquer solução será sempre incompleta.
Os problemas capciosos são caracterizados, portanto, por envolverem várias dimensões em conflito. Quando se melhora uma dimensão, piora-se outra. Se você resolve a dimensão econômica, piora a dimensão ambiental ou se resolve a ambiental, piora a política. Se perguntar qual é a prioridade, cada pessoa envolvida no problema oferecerá uma resposta diferente. Rittel e Weber identificaram inicialmente esse tipo de problema no planejamento urbano em 1973, mas designers em diversas outras áreas de projeto também o reconheceram.
Algumas pessoas preferem pensar que problemas capciosos são de responsabilidade do Estado e que empresas privadas não precisam se preocupar com eles. Porém, as atividades de empresas privadas frequentemente geram ou intensificam problemas capciosos. Sua participação na solução é essencial.
Vejamos, por exemplo, o problema capcioso da mobilidade urbana. Porque não temos carros elétricos nas ruas se a tecnologia já existe há pelo menos 100 anos?
Por essas e outras razões, sempre que surge um novo carro elétrico, ele é rapidamente assassinado. Atualmente, a esperança reside na Tesla Motors, que audaciosamente pretende prover toda a infraestrutura necessária para os seus carros elétricos. Porém, eu acredito que, mesmo que essa empresa consiga resolver alguns problemas, estará criando outros, como, por exemplo, os acidentes causados por sistemas de direção autônomos.
A Tesla Motors, assim como muitas outras empresas estadunidenses, aproveita a ideologia do solucionismo tecnológico para convencer seus investidores e consumidores. O design solucionista da Tesla tenta esconder os problemas de infraestrutura através da quebra de padrões estéticos ou da demonstração de poder tecnológico com o lançamento de carros no espaço. Porém, o problema capcioso da mobilidade urbana permanece. Mesmo que haja a transição para a energia elétrica, não há garantia nenhuma de que teremos menos engarrafamentos. É provável que o problema aumente com o tráfego de carros autônomos sem motoristas.
A Tesla não é uma empresa guiada pelo design e sim pela engenharia. Sendo assim, ela não expressa o diferencial que o design pode trazer para a solução de problemas capciosos. Ela tenta fazer-nos acreditar que consegue domesticar problemas capciosos mas estes, por definição, são indomesticáveis. O problema pode ser movido de um lado para o outro, mas nunca pode ser solucionado completamente.
O design problematizador, ao invés de tentar domesticar problemas capciosos, visa exatamente o contrário: identificar o problema capcioso que está por traz de vários outros problemas aparentemente domesticados. Uma vez identificado o problema capcioso, ao invés de resolvê-lo, o design problematizador expõe esse problema para a deliberação política entre os interessados no projeto ou para a sociedade em geral. A solução surge da deliberação e não da imaginação solitária do designer. É uma solução negociada pelo designer e não criada por ele, podendo inclusive envolver elementos de soluções existentes.
Essa negociação requer articular as diversas dimensões do problema através do pensamento projetual expansivo. Conforme escrevi anteriormente,
Os problemas do pensamento projetual expansivo são conhecidos como capciosos (wicked problems). Tais problemas estão em constante expansão (daí o nome desse pensamento). Quando você pensa ou fala sobre ele, ele já se transforma e se torna mais difícil de resolver. Por isso, ao invés de começar pela definição do problema, o pensamento projetual expansivo começa pela empatia para com as pessoas envolvidas com o problema. Isso pode ser desenvolvido de maneira distanciada pela observação ou pela participação em atividades comunitárias.
Ao invés de buscar requisitos, os projetistas buscam entender a moral do contexto. Já que não é possível resolver o problema, o que seria ético fazer a respeito? A resposta a um problema capcioso não é uma solução tecnicamente correta, mas uma ação para transformar o mundo de maneira ética, mesmo que não se tenha certeza sobre a solução do problema.
O design problematizador é mais humilde do que o design solucionista, mas não é omisso nem neutro. Ao invés de evitar problemas capciosos ou negar que eles existam, parte do princípio de que, se esse problema for discutido em grupo e as pessoas perceberem a amplitude dessa dificuldade, pode-se começar a encontrar soluções que, gradativamente, possam ir superando esses problemas.
A resposta do design a um problema capcioso não é uma solução definitiva e completa, mas sim um projeto de transição com algumas etapas esperadas e outras etapas deliberadamente desconhecidas e abertas à emergência. A transição busca reconfigurar a contradição que dá origem ao problema capcioso, sem no entanto, esperar que este seja resolvido. É por isso que eu não defino design como solução de problemas, mas como mediação de contradições. Darei mais detalhes sobre isso em posts futuros.
Nota de agradecimento: esse texto foi materializado a partir da transcrição de uma aula realizada por Bianca Lopes Lang. Que ver mais textos como esse? Ajude a transcrever outras aulas.
Este texto faz parte de uma série sobre Design Prospectivo. Veja os demais:
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 07.09.2020
Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/problemas_capciosos_requerem_solucoes_eticas_e_graduais.html