Na minha pesquisa de doutorado fiz uma importante descoberta: os problemas de usabilidade tem sua origem na divisão do trabalho. O que uma coisa tem a ver com a outra? A explicação convencional para os problemas de usabilidade diz que os desenvolvedores focalizam a tecnologia ao invés do usuário. Pois bem, minha descoberta não nega esse foco, mas explica o porquê.
Desenvolvedores não focalizam a tecnologia porque são pessoas anti-sociais, viciados em tecnologia, ou ignorantes. Desenvolvedores focalizam a tecnologia porque a sociedade espera isso deles. Em nossa sociedade, o valor de troca atribuído à tecnologia é muito grande. Se o desenvolvedor domina uma tecnologia de interesse à sociedade, ele recebe em troca um bom salário. As pessoas pagam pela tecnologia mesmo que ela não proporcione um valor de uso pois este não pode ser previsto antes da venda.
O valor de uso é apenas uma promessa antes da venda. Diferente do valor de troca, ele não pode ser quantificado. Embora as pessoas possam pagar a mais por uma promessa de valor de uso convincente, o valor pago será sempre um valor de troca, não de uso. Se a pessoa não conseguir usar a tecnologia, o valor de troca continuará o mesmo e o valor de uso será nulo. O contrário também é possível: que o valor de uso seja muito maior do que o esperado.
Em ambos os casos, esse valor de uso não poderá ser utilizado para trocar a tecnologia por outra. Em nossa sociedade, as pessoas pagam o valor de mercado, não o valor de uso, já que esse é muito específico e difícil de comparar. Não dá pra quantificar em dinheiro a relação afetiva que a tecnologia permite manter à distância, por exemplo. É possível quantificar quantas as horas de trabalho assalariado que uma tecnologia faz uma empresa perder, porém, a partir do momento em que se quantifica já vira um valor de troca, não de uso.
A capacidade de uma tecnologia em economizar tempo não implica necessariamente num maior valor de uso, já que este é apenas um dos aspectos em jogo. Em alguns casos, reduzir o tempo de uso pode aumentar a incidência de erros de julgamento. Exemplo: a pessoa clica tão rápido nos botões que acaba causando um desastre. O valor de uso não pode ser quantificado; o que pode ser feito é transformar um aspecto do valor de uso em valor de troca.
Mas o que isso tem a ver com a divisão do trabalho? A divisão do trabalho implica numa série de trocas antes que o produto seja vendido ou entregue ao usuário. O gerente de projetos passa o briefing ao designer, o designer cria uma interface e repassa ao desenvolvedor, o desenvolvedor envia o código para um analista de qualidade e assim por diante. Em cada uma dessas trocas, o valor de troca e de uso do produto é alterado, para mais ou para menos. Quando essa troca acontece entre empresas, por exemplo pela entrega de um fornecedor, o impacto é ainda maior.
Na gestão empresarial isso é chamado de cadeia de valor. Na animação abaixo, o Walmart utiliza esse conceito para mostrar como a empresa procura priorizar a sustentabilidade nas trocas efetuadas como fornecedores e consumidores.
Trago esse exemplo de varejo pois as empresas de tecnologia não estão acompanhando o movimento crescente de considerar a cadeia de valor fora de sua própria organização, incluindo valores não monetários como a qualidade de vida, sustentabilidade e responsabilidade social. Estes valores de uso estão sendo cada vez mais priorizados no mercado de consumo, porém, as empresas de tecnologia ainda não perceberam como se encaixar nessa tendência.
Vejamos o exemplo da Apple, uma das maiores empresas de tecnologia do mundo. Antigamente ela era conhecida como a empresa que fabricava os equipamentos mais duráveis, tanto do ponto de vista de hardware quanto de software. Os equipamentos Apple ficavam obsoletos muito tempo depois dos competidores, uma característica de sustentabilidade. Hoje em dia, a Apple faz o equipamento ficar obsoleto todo ano, com atualizações automáticas de sistemas operacionais cada vez mais pesados. A produção acelerada de novos equipamentos tem um impacto gigantesco não só no meio ambiente, mas também na qualidade de vida dos trabalhadores das fábricas chinesas.
A Apple transformou a usabilidade de seus produtos num valor de troca, numa imagem que é utilizada para vender mais e mais equipamentos. As pessoas pagam mais caro pelos produtos Apple do que pelos concorrentes porque acreditam que terá um maior valor de uso. De fato, a usabilidade dos produtos Apple ainda é superior, mas esse é apenas um dos aspectos do valor de uso. A qualidade de vida, a sustentabilidade e a responsabilidade social são deixadas em segundo plano. O animação iDiots deixa isso muito claro.
O que acontece com a Apple e com a maioria das empresas de tecnologia é que o valor de uso não é prioridade na cadeia de valor. O foco é no valor de troca, ou seja, em trocar a tecnologia por alguma outra coisa que interessa à empresa o mais rápido possível. Dinheiro, poder, conhecimento, fama e outras tecnologias são algumas das coisas equiparadas ao valor de troca.
Quando a cadeia de valor é orientada à troca e não ao uso, a divisão do trabalho se torna extremamente competitiva. Cada profissional ou empresa busca receber o máximo pelo seu trabalho, mesmo que para isso seja preciso comprometer o valor de uso. Como o valor de uso não é considerado, o foco fica sendo na entrega, não na qualidade do produto. O profissional faz o que é solicitado e nada mais. Não existe um interesse em superar as expectativas a não ser que haja um incentivo na troca -- bônus financeiro ou cargo de chefia. O valor de uso não é prioridade para o profissional porque ele não precisará utilizar o resultado de seu trabalho. O profissional não sabe nem como será utilizado o seu trabalho! Quem se importa?
Numa tentativa de reverter esse processo, as empresas contratam profissionais especializados em experiência do usuário (ExU). Esse profissional é responsável por conectar equipes de desenvolvimento com produção gráfica, clientes com usuários. Enfim, fazer o meio de campo onde o valor de uso é disputado. De maneira ingênua, a empresa piora ainda mais a contradição. O profissional de ExU é pago para garantir certos aspectos do valor de uso -- usabilidade principalmente. Como todos os demais profissionais, ele almeja o valor de troca, com a diferença de estar ligado diretamente ao usuário. Ele não foca no valor de uso por ser uma pessoa comunicativa da mesma maneira que o desenvolvedor não foca na tecnologia por ser introvertido.
O gráfico abaixo mostra como o salário do designer de interação se manteve sempre alto no ranking dos Estados Unidos de todas as profissões de design.
Mas então, como priorizar o valor de uso na cadeia de valor? Minha primeira recomendação é a seguinte: faça os profissionais utilizarem o resultado de seu trabalho. Utilizar mesmo, não testar eventualmente. Os profissionais começam a valorizar o uso quando dependem da tecnologia que produzem para fazer alguma coisa de seu interesse.
Isso implica numa mudança radical na divisão do trabalho e na estratégia da empresa. Ao invés da empresa e seus profissionais focalizarem em desenvolver tecnologias para terceiros, eles desenvolvem em primeiro lugar para si mesmos. Se o produto é útil para eles, a chance é maior de que será útil também a outros. Num projeto de priorização do valor de uso na Webgoal, desenvolvi uma ferramenta simples para visualizar essa possibilidade: o diagrama ROI X tesão.
Esse conselho parece ir contra a proposta de design centrado no usuário. Sim, a proposta é fazer design centrado em nós, como sugeriu o Rodrigo Gonzatto. Quem era chamado de usuário passa a ser parte do "nós", parte de uma comunidade de cocriação de valor. A cocriação é a alternativa à troca na divisão do trabalho. Ao invés de trocar um produto pronto, a cocriação convida as pessoas interessadas a construir algo em conjunto, algo que terá valor de uso para todos os envolvidos.
Isso já acontece de certa maneira dentro das empresas quando as equipes trabalham colaborativamente. O valor de uso é temporariamente priorizado enquanto todos os profissionais estão engajados e não só os especialistas no assunto. Porém, ainda assim, se a estratégia da empresa é gerar valor de uso internamente e converter em valor de troca para o mercado, o valor de uso em todos os seus aspectos não será preservado. O oposto dessa estratégia é a minha segunda recomendação: estender a cocriação para fora das fronteiras da empresa.
Minha pesquisa de doutorado aponta para o design participativo como uma maneira de priorizar o valor de uso, tanto dentro quanto fora da empresa. Os profissionais dentro e de fora da empresa criam e usam os protótipos da tecnologia juntos e os resultados são compartilhados entre todos. Além da influência sobre as capacidades da tecnologia, os participantes recebem algo ainda mais valioso: conhecimento. Ao invés de conhecer apenas a parte que lhe cabe, seja especialidade de desenvolvimento ou de uso, o participante adquire um conhecimento holístico sobre a tecnologia, seu contexto e possibilidades de uso e adaptação.
Quando as pessoas trabalham focalizadas em gerar valor de uso, a competição entre elas diminui. Os incentivos financeiros se tornam secundários para motivar as pessoas a participar. As pessoas participam porque sabem que a tecnologia que estão construindo juntas será realmente útil e agradável na vida delas e de outras pessoas que elas se importam. Esse valor de uso não tem preço, mas pode implicar num alto valor de troca. Quando a tecnologia é avaliada, a comunidade de desenvolvedores e usuários faz peso na balança. Isso porque, devido à sua diversidade, ela não prioriza apenas um aspecto do valor de uso (usabilidade), mas também a qualidade de vida, sustentabilidade e responsabilidade social.
Um exemplo que todo mundo já experimentou é a organização colaborativa de festas e presentes de aniversário dentro de uma empressa. Os profissionais colaboram muito mais do que no dia-a-dia porque o valor de uso é a prioridade. Todo mundo dá seu pitaco e ninguém censura ninguém, do contrário a festa acaba na hora. O ponto é justamente aproveitar a organização da festa tanto quanto a própria festa.
Priorizar o uso na cadeia de valor é um dos grandes desafios não só para as empresas que trabalham com tecnologia mas também para os profissionais que lutam pela questão do usuário dentro das empresas. Esse desafio é urgente em mercados saturados, em que a inovação qualitativa está prestes a superar a inovação quantitativa.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 28.01.2015
Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/priorizando_o_uso_na_cadeia_de_valor.html