Semana passada estive na aclamada semana de design de Milão. Foi uma experiência incrível. A cidade é completamente mobilizada e qualquer birosca, oficina de automóvel ou galpão abandonado vira um espaço de exposição. Deu pra ter um zeigeist do que está rolando na vanguarda do design de produtos, interiores e moda.
Não me surpreendi nem um pouco de que o objeto mais frequentemente exposto era uma cadeira. Eu já perguntei a diversos designers por que a cadeira tem esse papel icônico na profissão, inclusive, até vi uma cadeira perguntar isso no livro Design Livre.
As respostas que ouvi nunca me satisfizeram: "É um objeto simples", "com várias possibilidades", "apresenta desafios práticos de sustentação". Existem vários outros objetos com estas características, porém, a cadeira prevalece.
Eu não acredito que a origem deste fenômeno esteja nas características intrínsecas ao objeto já que estas características mudam de tempos em tempos. A cadeira abaixo vista em Milão poderia nem ser considerada uma cadeira há alguns anos atrás e talvez para alguns ainda não seja uma cadeira nos dias de hoje.
Na minha antiga coluna para a Tramontina Design Collection, descrevi a cadeira como o resultado de uma interação entre o comportamento dos usuários e o design:
O que é uma cadeira? Um objeto que serve para sentar, ou melhor, que foi feito para sentar. Uma cadeira também serve para ficar em pé e alcançar coisas no alto do armário, apoiar temporariamene mochilas e bolsas ou brincar de nave espacial, mas certamente ela não é tão adequada para estes usos desviados. [.] cadeira não é feita pra ficar em pé porque temos o costume de sentar nelas. Se insistimos em deitar, seu design poderá ser atualizado para dificultar ou facilitar tal ação.
Em Milão eu vi uma série de cadeiras muito elegantes que acompanhavam a mudança de comportamento do Europeu no sentido da sustentabilidade e apreciação da Natureza.
Esta mudança implica na produção localizada e no faça-você-mesmo. A cadeira abaixo é impressa em 3D e pode ser reciclada para imprimir outras coisas quando o dono enjoar dela.
A interação entre design e comportamento é uma boa explicação para a forma de uma cadeira em particular, porém, não resolve a questão inicial.
Há alguns anos atrás, o Hugo Cristo colocou um comentário neste blog que me fez escrever um post inteiro sobre depois. Eu vou repetí-lo porque só agora compreendi uma coisa:
O que é uma cadeira? Um assento, pés e um encosto? A relação entre assento, pés e um encosto? Ou a relação entre qualquer coisa que desempenhe o papel de assento, de pé e de encosto, naquele contexto sócio-histórico? Quando a cadeira vira banco? Quando quando substituímos uma das partes, quando tiramos uma das partes, ou quando mudamos as relações entre elas? Estou perguntando conceitualmente, é claro. Não falo de nenhuma cadeira em especial e de todas as cadeiras ao mesmo tempo.
Nas minhas primeiras leituras sobre o materialismo dialético eu tinha entendido que a abstração tinha menor valor do que as coisas concretas. A cadeira em geral é uma uma abstração, logo, não me interessava. Eu queria tratar de cadeiras específicas, que era onde via a possibilidade de mudança prática no dia-a-dia. Porém, após ler Engeström e Lefebvre na minha pesquisa de doutorado, estou convencido de que é preciso também repensar os conceitos que dão origens às coisas para promover mudanças sustentáveis.
Minha noção de conceito era individualista. Eu pensava que um conceito era uma ideia que poderia diferir de uma pessoa para a outra. Mas não é isso que conceito significa no materialismo dialético. Conceito é uma coisa coletiva, compartilhada, construída socialmente ao longo da história de uma sociedade. A reinterpretação e modificação do conceito por uma pessoa individual existe mas enfrenta resistência no social. Essa resistência é sintoma da materialidade do conceito, que apesar de não ser físico é muito concreto.
Veja, por exemplo, os banquinhos expostos na galeria sobre design brasileiro em Milão assinados como "design anônimo". Estes bancos não estão questionando o conceito de cadeira, mas sim o conceito de design, pelo contexto em que estão exibidos. Para muitos designers, o conceito de design está muito ligado ao conceito de autoria por isso embora estes bancos não tenham um autor que se proclama, chama-se o autor de anônimo. Na verdade, os bancos não tem autor porque eles não foram criados com base no conceito de autoria. A inclusão destes trabalhos em tão privilegiado local contribui para liberar o conceito de design do conceito de autoria, uma das propostas do design livre.
Então a chave para a resposta da minha pergunta inicial estaria no conceito de cadeira? Sim, mas não nas suas características e sim na sua origem. Para Engeström, o formação de um conceito parte de uma célula germe, a abstração baseada na experiência sensorial, que é:
A meu ver, a célula germe que dá origem ao conceito de cadeira em nossa sociedade é o conforto. O conforto é uma relação positiva entre o corpo humano e um objeto ou ambiente, porém, não se trata de um encaixe. Já que o corpo humano está em constante mudança devido a processos biológicos e sociais, o conforto é dinâmico. Uma posição confortável dura pouco e logo é preciso se ajeitar de novo, ou seja, trata-se de uma interação entre corpo e objeto.
O conforto se tornou ubíquo em nossa sociedade a partir do momento em que nos tornamos sedentários e, ao mesmo tempo, hiperativos. Nosso corpo está parado, mas nós não podemos nos satisfazer com isso, precisamos agir: assistir televisão, conversar, trabalhar no computador, checar o celular. O conforto é precisamente essa dinâmica de se ajeitar aqui e acolá para fazer algo. No seu interior encontra-se a contradição entre o sedentarismo e a inquietude da vida urbana, o todo complexo.
A cadeira é o objeto preferido porque está no limiar dessa contradição: a pessoa sentada numa cadeira não está nem completamente relaxada, nem completamente ativa. O conceito de cadeira permite que a célula germe, o conforto, se desenvolva de formas muito variadas, daí a diversidade de cadeiras encontradas em Milão.
A célula germe e o conceito não são absolutos e mudam conforme o tempo, pois são coletivos. O objeto preferido dos designers pode ser o telefone celular caso voltemos a viver como nômades, por exemplo. Na verdade, o que é mais provável é que a célula germe que sucede o conforto já esteja aí, carecendo de um conceito.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 17.04.2014
Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/por_que_a_cadeira_o_objeto_preferido_dos_designers.html