Participação verdadeira na origem do projeto

Todo projeto existe porque alguém, em algum momento, desejou que algo fosse projetado. A origem do desejo podem ser estímulos internos ou externos à pessoa, mas essa relação é difícil de ser precisada, bem como o conteúdo do próprio desejo, pois este é efêmero e pouco elaborado. Desejos são capazes de incentivar projetos, mas tão logo se inicie o processo racional, eles são convertidos em objetivos, ou seja, metas a serem atingidas pelo projeto.

Até ler o livro Acting With Technology sobre Teoria da Atividade, eu achava que essa transição não podia ser explicada racionalmente, relegando-o aos mistérios do inconsciente, mas agora percebo que conscientizar-se desse processo é crucial para manter o controle sobre o desenvolvimento do projeto, pois aqui estão as raízes do mesmo. Tudo o que surge em decorrência estará atrelado às suas características.

Como vimos, o desejo surge do estímulo. O desejo pode levar à ação imediatamente ou ser ignorado. Caso o desejo não seja atentido, ele pode voltar posteriormente ou ser completamente esquecido. Quando o desejo se incute numa ação humana, chamamos isso de intenção. A intenção é mais estável que o desejo, porém ainda pode mudar no curso da ação. Posso abrir um software com a intenção de fazer X e mudar para Y no momento em que é mostrada a tela de boas-vindas do software, que me lembra que é prioritário fazer Y.

De acordo com o clássico Plans and Situated Actions, as pessoas não costumam refletir sobre suas intenções durante o curso da ação, muito menos formular objetivos que devem ser alcançados ao fim da ação. Na maioria das situações do dia-a-dia, as pessoas vão reagindo conforme as condições do ambiente e a interação com outras pessoas. É por esse caráter transitório e variável dos fatores que delineiam a ação humana , que a autora do livro recomenda que as ações sejam estudadas apenas dentro de uma situação específica, sem generalizações.

A atividade projetual, segundo essa visão, deve funcionar da mesma forma: sem metodologias rígidas e objetivos fixos, aberta para se ajustar no seu próprio curso; o tal design negociado de que falei há alguns meses, só que ainda mais radical.

Na prática, isso me parece inviável, embora não tenha tentado. Mesmo que se trate de uma atividade projetual coletiva, na qual várias pessoas participem, é preciso estabelecer uma meta e um caminho comum. Segundo a Teoria da Atividade de Alexei Leontiev, o que mantém a consistência de uma atividade coletiva é a orientação a um determinado objeto. Objeto aqui não é necessariamente alguma coisa física, mas aquilo que se deseja. Uma atividade projetual pode estar orientada tanto a uma forma para sentar, quanto a uma poltrona. Estes objetos são diferentes e levarão a resultados diferentes.

Compare a poltrona Anêmona dos irmãos Campana...

Assento projetado pelos Irmãos Campana

Com esta poltrona comum:

Poltrona comum

Os projetos dos Campana não têm o objetivo de serem consumidos em massa, logo não precisam seguir os padrões estabelecidos no mercado. O negócio deles é projetar coisas que façam as pessoas pensar sobre.

Cadeira Anêmona no Centro de São Paul Cadeira Anêmona no Centro de São Paul

Em entrevista concedida ao Design Museum, os irmãos revelam que começam o projeto a partir de um material escolhido. Em geral, preferem materiais que os consumidores costumam jogar no lixo, nesse caso, mangueiras de PVC. A partir do material, eles bolam uma forma que sirva para sentar e transmitir um conceito. O conceito da poltrona Vermelha representa, para eles, a beleza do caos e da descontrução do Brasil.

Poltrona Vermelha

O conceito vislumbrado foi a intenção por trás do ato de projetar; o material tomou essa forma intencionalmente. Entretanto, acredito que o objetivo do projeto não era necessariamente transmitir o conceito. Se fosse, eles seriam mais explícitos, como o cartaz do festival de dança Samba do Crioulo Doido em Berlim:

cartaz do festival de dança Samba do Crioulo Doido em Berlim

Não posso dizer ao certo quais foram os objetivos dos Campana nos projetos dessas poltronas, ou em outras palavras, o que eles queriam obter com o projeto. Ao observar a recorrência do tema assento e a forma diferenciada de abordagem deles, arrisco dizer que, dentre outros objetivos, eles queriam mostrar que é possível projetar coisas para sentar de diferentes formas.

Quando o objeto da atividade projetual é uma coisa determinada (uma poltrona, por exemplo), já existem padrões previstos, mas quando o objeto é o que a coisa vai proporcionar (assento, reflexão, admiração, etc), então é possível inventar coisas realmente novas. Certamente é um caminho mais abstrato e complexo, mas os resultados são excitantes. O iPod só é o iPod porque a Apple se propôs a redefinir a forma como as pessoas escutavam música digital.

Quando conheci o designer-psicólogo Hugo Cristo, ele me disse eloquentemente que estava procurando trabalhar com essa abordagem focada no conceito do objeto. Depois, numa discussão por aqui, argumentou que isso já é feito por qualquer ser-humano:

O que é uma cadeira? Um assento, pés e um encosto? A relação entre assento, pés e um encosto? Ou a relação entre qualquer coisa que desempenhe o papel de assento, de pé e de encosto, naquele contexto sócio-histórico?

Para Hugo, a contraparte material do produto não é nada sem as relações de significado a ela atribuídas.

Na minha proposta para o ato projetual, não se trata mudar as ferramentas (o método), mas o enfoque da concepção dos objetos em direção à concepção dos conceitos. É uma mudança difícil especialmente porque os conceitos são produzidos coletivamente e transformam-se através da ação de forças muito distintas (economia, política, religião, semiótica, ergonomia, novela das 8...).

Segundo essa abordagem, o designer pode pegar qualquer objeto, recriar suas relações de significado e, dessa forma, transformar o objeto em outra coisa.

Curiosamente, num post recente em seu blog, ele publicou um experimento em stop-motion que mostra um coelhinho agarrado numa cenoura dançando freneticamente de acordo com uma trilha sonora. O título "Michael Jackson e sua cenoura" costura a teia de significado recriada em cima do bichinho de pelúcia. Imagino que o Hugo não tinha a intenção de demonstrar com esse vídeo sua abordagem para o design, mas fica o parênteses de que os objetos projetados por um designer ficam marcados pela sua orientação teórica.

Coelhinho com a cenoura

Concordo que a relação do coelhinho com o roteiro do filme transforma o significado que a imagem do coelhinho suscita, mas o coelhinho com a cenoura continua lá. A forma do coelhinho foi delineada para mediar a afetividade humana e, portanto, o pelo é fofo; a cabeça é grande como de um bebê, as patas são desengonçadas e etc. Não se pode enfiar balas metálicas num coelhinho destes e sair metralhando seus colegas de colégio. Isso também não podia ser feito com o Doom que os meninos de Columbine gostavam de jogar, mas eles arrumaram um jeito de encontrar armas parecidas com as que usavam no jogo para matar monstros.

Uma cena comum estraçalhando um monstro no Doom

Não quero dizer que o Doom é o único culpado pelo massacre, mas certamente se tornou parte do imaginário das crianças, assim como todos os filmes e desenhos animados violentos que elas assistiram na sua televisão. Quase nada do que imaginamos fazer, fazemos de fato, mas nesse caso foi feito.

Acredito que os criadores de Doom não tinham a intenção de estimular a violência, mas eles estavam servindo a intenções coletivas da sociedade de encontrar meios para catarse de uma violência reprimida. Sendo assim, a forma dada ao objeto encerra esse modo de expressão da violência.

O objeto faz a mediação entre os desejos de uns e as ações de outros, mas essa mediação não é neutra. A mediação é projetada para induzir à ação que possa satisfazer estes desejos. Mesmo que o objeto possa ser usado para satisfazer outros desejos, suas características não serão otimizadas para tal. Os desejos que delineiam o objeto podem advir de ser de seus próprios criadores, de seus consumidores e também de seus recriadores, pessoas que desejavam algo que o objeto não satisfazia e mudaram sua forma ou modo de uso para satisfazer seus desejos.

Esse discurso incomoda os designers, pois implica numa grande responsabilidade para seu lado. Designers preferem acreditar que a tecnologia é neutra para não se comprometerem, para não se sentirem culpados por massacres e outras consequências negativas do uso de suas criações.

Muitas vezes, os designers se arvoram em discursos racionais para justificar sua pretensa neutralidade. Argumentam que estão apenas tentando suprir as necessidades de seus clientes ou dos usuários com seus projetos. Inventam mil maneiras para pesquisar e descobrir o que as pessoas realmente precisam. Apresentadas como necessidades, as coisas que as pessoas precisam parecem completamente racionais.

Necessidade é, por definição, algo que não se pode viver sem, como beber, comer, dormir e etc. Alguns adicionam o sexo nessa lista, mas os monges celibatários em diferentes linhas religiosas vivem longa vida sem transar.

Pense se você realmente precisa de todos os artefatos projetados que estão à sua volta e verá que todos eles podem ser substituídos por outros mais simples. Não precisamos de prédios, não precisamos de estradas, não precisamos nem de luz elétrica. No passado, muitas pessoas viveram bem sem nada disso. Entretanto, o desejo por uma melhor qualidade de vida gerou essa sociedade encoberta pelo artificial. Para viver nesta sociedade, você não pode negar tudo o que é artificial, pois do contrário está fora dela.Você precisa, pelo menos, aceitar aquilo que está incluido no referencial de qualidade de vida. O problema é que o referencial de qualidade de vida muda conforme surgem novas possibilidades.

O inventor do celularImaginemos que estou fazendo uma pesquisa para verificar se as pessoas tem a necessidade de ter o primeiro telefone celular projetado: Tijolon ZYB. Apresento o Tijolon para uma pessoa que passa na rua e pergunto: "você tem a necessidade de ter isso?" As pessoas dizem que não, porque não sabem o que é isso. Explico que se trata de um telefone sem fio que funciona em qualquer lugar. Levo mais um não. "Mas você não tem a necessidade de falar com outras pessoas que não estão no mesmo local que você?" As pessoas respondem que não, porque já tem o telefone fixo para isso. Insistindo: "E a necessidade de ser encontrado por outras pessoas em qualquer lugar que você vá você tem?". Opa! Aqui algumas pessoas respondem que sim.

Mas peraí, como as pessoas podem ter a necessidade de serem encontradas em qualquer lugar, se isso não é possível? Se as pessoas estivessem realmente conscientes dessa necessidade, quando fosse apresentado o Tijolon, elas teriam imediatamente percebido que ele podia satisfazê-la. A última pergunta ou despertou o desejo de obter este benefício do Tijolon ou correspondeu a um desejo anterior. Esse desejo não é uma necessidade, porque todos viviam bem sem a possibilidade de ser encontrado em qualquer lugar. Quando uma pessoa não conseguia falar com outra, tentava outros meios ou esperava outro momento. Não havia a pressão de estar disponível 24 horas por dia como existe hoje, simplesmente, porque isso não era possível. Ainda é possível viver sem celular em nossa sociedade (sou testemunha), mas sem energia elétrica não dá. Imagino que daqui há alguns anos, o telefone celular será tão necessário como a energia elétrica.

A pergunta que não quer calar é: será que todo mundo quer isso? Ou será que as pessoas estão sendo obrigadas a se adaptar? De onde vem a intenção por trás desse projeto de encontrabilidade total do indivíduo? Do Peter Morville? Do Nicholas Negroponte? Do Lula? Ou estariam estes servindo aos desejos de diretores de mega-coorporações?

Difícil saber de onde surgiu o desejo. O fato é que, assim como no exemplo da pesquisa, ele se reproduz com uma velocidade avassaladora. Os profissionais que lidam com tecnologia deveriam ter maior comprometimento com a crítica de novas tecnologias.

Adam Greenfield escreve sobre este paradigma de computação ubíqua:

A forma precisa do "everywhere" depende das decisões feitas por designers, legisladores e mercados de compradores empoderados. A grande massa de pessoas exposta a tal sistema terá pouco a dizer na sua composição.

Não posso concordar com isso. Acredito no poder do indivíduo para mudar o mundo. Os indivíduos estão cada vez mais conscientes de seu poder. A tecnologia de informação está sendo apropriada para a mobilização e ação conjunta sem que as instituições repressivas se dêem conta. Se por um lado essa tecnologia priva o indivíduo de certos poderes, como poder relaxar sem ser incomodado, oferece outros.

Enquanto designer, uma contribuição possível para virar o jogo é permitir e incentivar a participação das pessoas no processo de design. Para isso, abandono o discurso paternalista de suprir as necessidade dos usuários e abraço a mediação de desejos, assumindo a sua não-neutralidade.

Como a participação pressupõe a atuação coletiva, é preciso chegar ao consenso para progredir num mesmo caminho. Os desejos de uma pessoa podem ser diametralmente opostos a de outra pessoa e, mesmo numa mesma pessoa, um desejo pode entrar em contradição com outro. É preciso, portanto, consensualizar os desejos que todos concordem que sejam realizados. O desejo transforma-se, então, num objetivo claro a que todos estão conscientes. Cada ação no grupo será balisada nesse objetivo, mas esse objetivo poderá ser, a cada ação, reavaliado. A crítica deve ser incentivada, especialmente para perceber a presença de forças sociais externas à atividade projetual. Será preciso cuidar para que os objetivos consensualizados não entrem em forte contradição com os interesses de subgrupos ou indivíduos, privando-os de sua liberdade.

Estas são apenas algumas considerações iniciais sobre a negociação de objetivos. Preciso ver isso funcionando na prática para entender melhor. Espero que sirva de contribuição para mostrar que os designers não perderão seu trabalho quando as pessoas participarem mais ativamente do processo de produção de artefatos. Pelo contrário, eles terão bem mais trabalho, mas um trabalho de uma natureza diferente. Ao invés de criar sozinho, o designer vai mediar uma criação coletiva. Design, mais do que nunca, será algo além do "desenho".

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 26.03.2007

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