Em primeiro lugar, reconheço dois tipos de política no Brasil: a política oficial, disputada por políticos profissionais e figurões, e a política do dia-a-dia, disputada por todos nós. A primeira é aquela que aparece no jornal, que pede voto na eleição, que fala mais do que faz. A segunda é silenciosa, aquela que se mistura com a vida privada, que faz mais do que fala.
Na minha perspectiva, qualquer ato é político, pois afeta o público direta ou indiretamente. Ir de carro para o trabalho pode não parecer nada político, porém, quando esse ato é multiplicado por milhares de pessoas, fica óbvio o caráter político. Mesmo não havendo escolha, continua sendo político. Não ter uma posição já é uma posição.
O que está acontecendo no Brasil no momento é que a política oficial caiu em descrédito e a política do dia-a-dia resolveu protestar. A partir do momento em que os milhares de atos anônimos se conscientizaram de seu poder, aconteceu uma inversão: a política do dia-a-dia ganhou o espaço público. Porém, não acredito que essa inversão dure muito. Lideranças vão emergir ou se infiltrar e a política oficial vai voltar a dominar o espaço público.
Isso acontece porque embora o Brasil tenha um sistema de política oficial democrático, não tem uma cultura de política do dia-a-dia democrática.
Começa no lar, com a figura do pai (ou da mãe) de família tentando educar as crianças a obedecer, sem explicar o porquê. Porque crianças precisam aprender a obedecer? Porque a sociedade brasileira vai esperar isso delas quando ela crescer. Um dia o sujeito vai ter um emprego e um patrão que irá lhe dar ordens. Quando o sujeito não concordar com a ordem e argumentar contra, isso não será reconhecido como uma proposta democrática, mas sim desobediência.
O sujeito só poderá falar o que pensa quando se tornar adulto ou patrão, mas aí já será tarde demais. Quem aprendeu a obedecer já aprendeu a mandar.
Se as oportunidades de participação no lar e no trabalho são restritas, como é que se espera que o brasileiro faça bom uso do sistema democrático vigente? Como é que se espera que ele saiba respeitar opiniões diferentes? Como é que se espera que ele faça escolhas de acordo com o que é melhor para todos, não necessariamente para si próprio? Ele nunca foi ensinado a fazer isso. E mesmo que tenha feito algum dia, ninguém aplaudiu.
Desde que o PT assumiu o governo e passou a agir de forma similar à direita, eu perdi as esperanças na política oficial. O PT pode ser substituído, ou pode ficar, pra mim não importa. Vou continuar sem esperança. A esperança que me resta é a política do dia-a-dia. Quando o dia-a-dia for democrático, então, haverá a possibilidade de uma política oficial realmente democrática.
E o design com isso?
Em primeira instância parece razoável a contribuição do design aos protestos com projeto de cartazes, websites, aplicativos e outras ferramentas que ajudam os manifestantes a posicionar a política do dia-a-dia.
Porém, eu acredito que o maior potencial democrático do design não está nos que ele entrega, mas no seu processo. O processo de design pode ser uma forma organizada, criativa, construtiva de participação democrática, seja na política do dia-a-dia, seja na política oficial. Mais do que votar em opções, o participante pode criar as opções.
O processo de trabalho de designers profissionais já é bastante democrático, com raras exceções de designers super-stars. Os designers aprendem na faculdade a criar e desenvolver em grupo. Eles aprendem que melhor do que perder tempo com intermináveis discussões de planejamento, é muito mais produtivo ir construindo as opções enquanto se discute, seja através de rabiscos ou protótipos.
A democracia no design, entretanto, diminui quando aparece a figura do cliente ou do usuário. Os designers acreditam que clientes e usuários não sabem o que quer, não sabem projetar, e portanto devem deixar a cargo dos profissionais. Em resposta, o cliente se posiciona como patrão e empurra goela abaixo suas reinvidicações. O usuário, por sua vez, não compra o produto, ou reclama no SAC, ou faz uma gambiarra pra que funcione do jeito que ele quer.
É ou não é uma disputa política? Se pensar que os produtos são reproduzidos em escala industrial, aos milhares, que concorrem num mercado saturado, que geram consumo de materiais primas, lixo, trocas de informação, e tantas outras consequências de interesse público, fica evidente que todo design é um projeto político.
Há 7 anos eu tenho trabalhado para que esse projeto político inclua também uma pauta democrática. Eu acredito que um produto gerado democraticamente ajuda a promover a democracia na política do dia-a-dia. Eu chamo isso de design participativo.
O design participativo surgiu nos anos 1970, em diferentes lugares, com diferentes nomes. Na Escandinávia estava ligado ao desenvolvimento de software; nos EUA, ao projeto de prédios comunitários tais como escolas e hospitais; e no Brasil ao projeto de produtos para segmentos da população inexplorados pela indústria. O design participativo no Brasil também é chamado de design social ou de design em parceria. Existem algumas diferenças entre os termos utilizados e as práticas, mas o ideal democrático é o mesmo.
Na minha pesquisa de mestrado, eu experimentei se era possível fazer design participativo à distância, sem as reuniões presenciais características da metodologia. O portal do BrOffice.org não foi ao ar antes que a comunidade se dissolvesse, mas o experimento serviu para mostrar que era possível. Mais tarde, desenvolvi junto com meus colegas do Faber-Ludens, a Plataforma Corais, que oferece ferramentas abertas para desenvolver projetos participativos à distância.
Um dos projetos desenvolvidos com essa plataforma é o Vocabulário da Participação Social, uma iniciativa do website Cidade Democrática para habilitar a troca de dados entre websites e aplicativos de cidadania. Mais de 60 pessoas participaram das discussões online e offline sobre como seria a estrutura de compartilhamento de dados. O que parece uma mera questão técnica é na verdade uma questão política fundamental, pois fica evidente as barreiras e possibilidades criadas pela estrutura adotada.
Um exemplo: o Marco Gomes criou um aplicativo para mapear protestos no Brasilbaseado na plataforma Ushahidi. É uma iniciativa muito bacana para tornar visível focos de violência policial ou de vandalismo, porém, a estrutura de dados não ajuda a compreender o motivo dos protestos. O aplicativo não pergunta pelas causas defendidas.
Isso não é necessariamente um problema, já que o foco do aplicativo é outro. O Vocabulário da Participação aponta um caminho para o desenvolvimento desse aplicativo ou de outros aplicativos que trabalhem melhor a questão das causas. Acredito que se os protestos evoluirem para uma ação mais construtiva por parte da população, então teremos aplicativos focalizados nas causas e propostas.
Graças à Plataforma Corais, eu pude participar desse e de outros projetos no Brasil enquanto faço meu doutorado na Holanda. O tema da minha pesquisa é design participativo na Arquitetura. Embora exista uma tradição de design participativo na Arquitetura nos EUA, aqui na Holanda é novidade.
A Holanda é um país que tem uma cultura democrática muito forte. Os pais dão mais liberdade as crianças, os chefes costumam perguntar a opinião dos subalternos antes de tomar uma decisão e o governo promove várias formas de participação além do voto. Porém, frequentemente as discussões emperram porque não se consegue atingir o consenso.
Aí entra o design participativo.
O design participativo encaminha as discussões ao pedir que os participantes construam não só as soluções mas também os problemas de forma colaborativa. Uma característica fundamental do design é que ele não leva os problemas ao pé da letra. O salto criativo ocorre justamente quando o problema posto por um cliente ou usuário é reconceitualizado.
Embora isso não gere necessariamente consenso, os participantes entendem muito melhor como a opção foi construída. Mesmo que não concordem inteiramente com ela, reconhecem que foi uma construção coletiva e permitem que ela seja implementada. A política do design participativo promove o agonismo, o contrário de antagonismo.
Minha intenção é voltar ao Brasil quando terminar meu doutorado para continuar desenvolvendo projetos de design participativo. Estou acompanhando os protestos na esperança de que eles se convertam em ações construtivas. Acredito que as pessoas experientes nas metodologias de design poderiam contribuir e muito para a evolução do movimento. A Plataforma Corais está aberta a novos projetos e eu estou disposto a participar.
Isso é o que eu acho que o design poderia fazer pela política brasileira, mas e você, o que você acha? Manifeste-se, proteste, proponha, enfim, seja democrático!
Esse texto foi originalmente publicado na Revista Clichê.Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 25.06.2013
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