O papel da teoria na pesquisa de experiências

Tanto designers quanto usuários produzem teorias sobre suas experiências. O problema é que nem sempre essas teorias são reconhecidas como teorias. É comum na sociedade a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, o que também acontece na área do design. Essa divisão pode levar a opressão, justificando a separação entre classes, raças e gêneros, onde os oprimidos ficam associados ao trabalho manual e os opressores com a teoria. O mesmo acontece no campo acadêmico do design, que geralmente importa teorias de outras áreas, em vez de produzir suas próprias teorias.

No entanto, a pesquisa de experiências mostra que tanto designers quanto usuários produzem teorias sobre suas experiências. Os usuários também têm suas perspectivas e teorizam sobre como os objetos de design são criados e como devem ser utilizados. Nesse contexto, a triangulação de evidências é essencial para fortalecer as teorias, que podem ser baseadas em observação, intuição, leituras e participação. O processo de teorização consiste em partir da observação dos dados, reunir evidências e gerar propostas que expliquem essas evidências. Isso é fundamental para o desenvolvimento da área do design e para a compreensão mais aprofundada das experiências dos usuários.

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Então, vamos ver hoje o papel da teoria na pesquisa de experiências. Essa é uma apresentação rápida sobre as possibilidades não só de aplicar teorias no design, mas principalmente de produzir teorias a partir do design. Esta é uma temática que já apresentei em outras aulas, que é o preconceito, a separação, a divisão, a cisão entre o trabalho intelectual, o trabalho manual, o trabalho de projetar e o trabalho de usar na área do design. Está é uma opressão que a gente vivencia na nossa sociedade, que justifica a separação entre classes, que justifica a separação entre raças, entre gênero, muitas vezes com o oprimido ficando com o lado direito, o lado do trabalho manual, do trabalho de usar, do trabalho técnico, da ciência meramente aplicada e o lado da prática, enquanto que o opressor fica com o lado da teoria, o lado do trabalho de projetar, do trabalho científico, da ciência pura.

Isso é um tipo de opressão que a gente tem combatido bastante nessa disciplina quando estudamos metodologia da pesquisa, para que vocês possam aproveitar também esse conhecimento de metodologia da pesquisa no resto do curso de design, porque nosso curso é muito focado em desenvolver habilidades práticas, ele tem pouco foco em desenvolver habilidades teóricas, embora a gente veja um pouco de teorias, em geral as teorias são aplicáveis, e não teorias que você pode desenvolver. Isso é um problema não só do nosso curso, mas da disciplina de design como um todo, ela é vista como uma área que não produz a teoria por conta própria, ela importa teorias de outras áreas.

Quando você vai estudar a teoria e história do design, você vai aprender o que a sociologia diz sobre o design, o que a antropologia diz, o que a história diz sobre o design, agora o que o design diz sobre o design é raro. Imagino que durante o curso vocês não tenham tido ainda um contato muito claro com uma teoria do design sobre o design. Uma das teorias de design sobre design que a gente viu aqui nessa disciplina é a teoria de que existe um conhecimento embutido nas coisas sobre as coisas, que é o que a gente chama de epistemologia do design, ou modos projetuais de conhecer. Isso é uma teoria de design sobre design. Mas isso é uma exceção, dentro do cenário geral a área não se constituiu ainda como área de produção teórica. Eu estou tentando combater isso com essa disciplina de metodologia da pesquisa.

Isso porque no Brasil, especialmente, também tem esse problema, pela influência no modelo pedagógico da escola de Ulm, que é aquela escola sucessora da Bauhaus na Alemanha que vai influenciar fortemente o currículo da ESDI aqui no Brasil, que vai se espalhar para várias outras universidades brasileiras, em especial a UTFPR. Nosso currículo é muito influenciado pelo currículo da ESDI, que é um currículo que coloca as disciplinas de outras áreas como sendo a fonte de produção teórica para o design. Design é visto como uma área que aplica essas teorias e transforma elas em objetos, materializa, verifica essas teorias com a criação de algo.

Currículo da Escola de Ulm

Isso aqui é um diagrama dos currículos da escola de Ulm, que coloca como conceito central a discussão dos problemas trazidos pela economia, pela política, pela psicologia, filosofia, através das áreas de produção da forma, do produto, do design visual, da arquitetura, planejamento urbano e o design da informação. Então vejam que a área do design aparece com uma mediação entre uma área teórica e uma área de aplicação.

Eu acho que isso está mudando, precisa mudar e uma evidência muito clara que a área de pesquisa de experiências traz é que não só os designers que produzem teorias, mas também os usuários. Sobre o quê? Sobre a sua própria experiência. Sempre que você passa por uma experiência, mesmo que você não esteja tão consciente disso, mesmo que isso não seja reconhecido por outras pessoas, a gente teoriza essa experiência, a gente leva conhecimento de uma experiência para outra. Isso já é uma teoria.

Claro, tem gente que não vai considerar isso como uma teoria porque vai ter um nível de exigência, de abstração muito grande para uma teoria. Mas uma proposta crítica em relação ao conhecimento de design, que é essa que a gente tem desenvolvida aqui nessa disciplina, reconhece que todo conhecimento generalizado é uma teoria. Pode não ter chegado ainda no nível de uma teoria científica, mas é ainda assim uma teoria. Então, o trabalho da pesquisa de experiências pode ser, muitas vezes, se aproximar dessas teorias que os usuários têm sobre as suas experiências.

Teorias do designer e do usuário

Esse diagrama já tenho mostrado em vários momentos na disciplina, de que designers fazem parte de um grupo social mais ou menos homogêneo (por isso chamo de "O Mesmo") que tem o privilégio sobre os meios de projetar, enquanto que usuários fazem parte de um grupo desprivilegiado que não tem esse mesmo privilégio, que eu tenho chamado de "O Outro". Então, a pesquisa de experiências serve para que o Mesmo se conscientize das diferenças do Outro. Mas também o Outro pode se conscientizar das diferenças do Mesmo, porque ele também produz teoria e essa teoria pode ser ajustada, pode ser transformada, pode ser aperfeiçoada pelo encontro, por esse momento aqui em que os espaços do Outro e do Mesmo se encontram. E as teorias dos designers podem ser postas à prova, em confronto com as teorias dos usuários.

Então, colocando de maneira bem direta, designers são teóricos também, mesmo que não sejam reconhecidos como tal dentro da academia. Porque todo objeto que um designer cria contém em si uma teoria sobre como ele vai ser utilizado pelo Outro. Por outro lado, o usuário também está constantemente teorizando como esses objetos foram projetados, porque foram feitos desta maneira e qual era a intenção dos seus designers. Tudo isso é teoria também, teoria que o Outro produz para entender o Mesmo.

Isso é um fenômeno que já foi percebido por grandes empresas, como a Meta, que produz o Facebook e o Instagram, de que os usuários estão refletindo sobre as suas experiências, estão tomando decisões e mudando seu comportamento a partir do que eles imaginam que os designers estão querendo que eles passem nesses aplicativos.

estudo_instagram.png

Essa imagem vem de um estudo que a Meta fez há alguns anos atrás, sobre como os jovens percebem o efeito do uso do Instagram no seu dia a dia a respeito de questões sociais. Uma das questões que os jovens acreditam que o Instagram afeta negativamente é a sua autoimagem do corpo, ou seja, a maneira como eles veem o próprio corpo. Notem que tanto os usuários quanto a Meta sabem que o Instagram prejudica essa autoimagem. Isso porque, imagino que os usuários perceberam que eles veem um monte de fotos de outros corpos, de pessoas que são parecidas com ela, estão próximas à sua rede social, e você começa a se comparar e achar que o seu corpo não está tão bonito, não está tão bem apresentável, não está tão perfeito dentro do padrão, sendo que esses corpos muitas vezes estão sob efeito de filtros, não são os corpos verdadeiros. Então você começa a se pautar para achar que você deveria ter um corpo de um filtro, só que não existe esse corpo.

O Instagram tem contribuído, por exemplo, para um aumento significativo da demanda de operações faciais e plásticas de modo geral entre jovens. Adolescentes raramente pediam para fazer operação plástica e agora, por causa do Instagram, estão fazendo. Aí você fica pensando, poxa, por que os adolescentes simplesmente não param de usar? Porque se eles param de usar o Instagram, eles perde o contato com um monte de amigos que estão ali dentro. Nós que usamos estamos preso ali dentro do Instagram. Por mais que os usuários tenham uma perspectiva crítica e até expressem isso em suas postagens, elas não conseguem encontrar uma prática diferente. Existe a teoria crítica, mas não tem a prática crítica, porque por enquanto não tem uma rede social alternativa com outra lógica do corpo.

Esse exemplo da Meta demonstra que os usuários estão criticando e teorizando as suas experiências também, tentando entender o que está acontecendo. A pesquisa de experiências vai coletar essas teorias que os usuários. A pesquisa que a Meta fez é uma pesquisa de experiências, que buscou entender as principais dificuldades sociais ou problemas sociais que os usuários do Instagram enfrentam, especialmente na experiência de uso do aplicativo.

Além de simplesmente ouvir as pessoas, o que a pesquisa de experiências faz é triangular com outras teorias, como as científicas, aquelas que vimos no currículo da Escola de Ulm. Assim, construímos teorias da experiência completas e robustas, que incluem tanto teorias dos designers quanto dos usuários. Essas teorias explicam por que a experiência ocorre da maneira que ocorre.

Um exemplo de teoria muito influente para explicar por que usuários usam o Instagram é a teoria do vício. Dizem que, assim como alguém se vicia em uma droga, se vicia em uma rede social porque ela libera dopamina no cérebro, uma substância que é liberada quando algo agradável acontece. No Instagram, isso ocorre ao rolar o feed e ver coisas que agradam, criando um vício. Essa é uma teoria chamada de neuro UX, ou experiência neurológica. No entanto, essa teoria precisa de mais triangulação com evidências empíricas. Atualmente, ela é fracamente apoiada por estudos. Na minha opinião, é uma teoria fraca, porque além dos estímulos físicos, o ser humano é guiado por estímulos sociais. A sensação é apenas um dos elementos, e o significado social e o sentido pessoal também entram em jogo, muitas vezes em conflito.

Teorias de design

Por isso, é importante que as teorias sejam trianguladas em diversas fontes. Quanto mais fontes uma evidência tiver e quanto mais evidências sustentarem uma teoria, mais forte ela será. Isso fica mais claro no diagrama que mostra a teoria no centro, com bolinhas representando as evidências que a suportam. Algumas teorias têm poucas ou nenhuma evidência, enquanto outras têm várias. Uma teoria forte é baseada em evidências empíricas coletadas de várias fontes.O processo de teorização parte da observação de dados, que são organizados como evidências, para depois gerar uma proposta que explique o porquê dessas evidências - ou seja, uma teoria. Não há nada de muito complexo nesse processo.

Aqui temos um exemplo de como implementamos essa visão de teorização na prática dos nossos estudantes, usando um quadro de evidências trianguladas por tipos de fontes: observação, intuição, leituras e participação. Quando falamos de "vozes da minha cabeça", estamos nos referindo à intuição. Embora não seja uma fonte ruim, ela precisa ser triangulada com outras fontes.

Teorizando evidencias peq

Depois de organizar evidências e fontes, chega o momento de teorizar. Para isso, gosto de usar massinha de modelar e Atom Lig, que são materiais com características opostas e que ajudam a capturar essa característica generalizadora da experiência. Um exemplo de estudante que trabalhou com isso investigou a experiência de pessoas em situação de rua, propondo que a "coberta" que essas pessoas usam é uma metáfora para qualquer situação vivenciada na rua. Perguntei a ele: "Quem puxa essas cobertas?" e isso disparou nele a reflexão de que o racismo está por trás dessa situação.

Teoria da situação de rua

Esse tipo de abordagem de teorização com as mãos vem sendo experimentado há algum tempo, e pode ser feito de forma mais avançada através de uma metodologia chamada teoria fundamentada. Outro exemplo é o estudo de mestrado de Elias Harmuch Neto na PUC-PR, em que ele investigou como se forma um "devigner" (developer + designer). Ele usou ferramentas como o Atlas TI para organizar as evidências, mas para chegar na sua teoria, foi fundamental fazer um modelo metafórico de Lego Serious Play. Com ele, Elias identificou um padrão comum entre esses estudantes que tinham interesse desde a infância em desmontar e montar coisas, evoluindo para um perfil multifacetado na vida adulta, o tal do devigner.

Projetos de design desenvolvidos a partir de teorias fortes geram experiências únicas e memoráveis, que agregam valor à experiência. Acredito que a produção de teorias, embora ainda pouco valorizada, é essencial para o sucesso de um projeto.

Exercício

Teorizando evidencias peq

O objetivo deste exercício é explicar o porquê da experiência estudada ocorrer tal como ocorre. Para explicar isso, será desenvolvida uma teoria a partir das evidências coletadas até então.

  1. Escrever em postits (verdes) todas as evidências (ou descobertas) coletadas até então
  2. Escrever em postits (laranjas) as fontes de cada evidência
  3. Organizar as fontes entre os tipos de fontes: intuição, observação, leituras e participação
  4. Ligar as evidências às fontes riscando o quadro branco
  5. Observar o quadro e produzir uma teoria com as mãos, utilizando uma mistura de massa de modelar e atomlig (podem ser utilizados outros materiais estruturantes também). A teoria deve explicar todas as evidências de uma vez só.
  6. Escrever um postit (rosa) para cada parte da explicação teórica.

Série

Este episódio faz parte de uma série de aulas sobre pesquisa de experiências (ux research).

  1. Pesquisa de experiências no mercado e na academia
  2. O valor da pesquisa no Design de Interação
  3. Introdução à pesquisa de experiências (UX Research)
  4. Planejando pesquisas de experiência com UXCards
  5. Introdução ao UXFrameworks na pesquisa de experiências
  6. Problematizando a experiência do usuário (ExU)
  7. Fazendo descobertas na pesquisa de experiências
  8. Pesquisa bibliográfica de experiências (desk research)
  9. Como fazer pesquisa de campo em design de interação
  10. Pesquisa exploratória de oportunidades de inovação
  11. Etnografia no design com Teoria da Atividade
  12. O papel da teoria na pesquisa de experiências

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 21.11.2022

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