Perceber, criar e medir as qualidades da experiência do usuário não são tarefas triviais. Existem várias abordagens para esse assunto, melhores em alguns aspectos e piores em outros. Cada abordagem se baseia em um construto teórico sobre o que é a experiência do usuário e como ela pode ser medida através de variáveis. A relação entre as variáveis é definida através de um modelo, que estabelece níveis, camadas, ordem ou prioridade entre as variáveis. O modelo que trata de qualidades é chamado de modelo de qualidade.
No caso da experiência do usuário, o modelo de qualidade sintetiza uma visão ideal da experiência, como se todas as variáveis fossem contempladas. Em projetos concretos, nem sempre o modelo pode ser implementado, pois há muitas contingências. Mesmo com essa conhecida limitação, modelos de qualidade são utilizados na prática de design para orientar a criação e avaliação de qualidades da experiência do usuário.
Existem vários tipos de modelos. Os modelos descritivos são os mais próximos da prática, pois buscam descrever o que está sendo feito. Já os modelos prescritivos buscam definir como a prática deveria ser. Parecidos com os prescritivos, os modelos normativos estabelecem critérios mínimos para a prática. Com o objetivo de avaliar experiências, os modelos de mensuração possuem variáveis bem definidas juntamente com procedimentos para coletas de dados. Por fim, os modelos preditivos servem para prever uma situação futura através de conhecimentos formalizados da prática. É importante reconhecer o tipo de modelo para utilizá-lo de acordo com seu propósito.
Um exemplo de modelo descritivo é o User Experience Honeycomb do Peter Morville. Ele propõe que a experiência do usuário abranja sete qualidades: encontrabilidade, credibilidade, acessibilidade, desejabilidade, utilidade, usabilidade, e valor, sendo, esta última a principal. O modelo foi criado para superar um modelo antigo da Arquitetura da Informação, que relacionava conteúdo, contexto e usuário. A mudança de foco da prática profissional da informação para a experiência motivou Morville a propor o Honeycomb para reunir as principais preocupações dos profissionais daquela época.
Esse modelo serve apenas para pensar e discutir as qualidades da experiência do usuário. Ele não orienta como criar essas qualidades, por isso, é no máximo um modelo descritivo. Como seria um modelo prescritivo? Um exemplo bem conhecido é os Elementos da Experiência do Usuário de Jesse James Garrett. Ele estabelece cinco níveis de abstração para projetar a experiência do usuário. O nível mais abstrato é o da estratégia, seguido de escopo, estrutura, esqueleto e superfície. A superfície seria o nível mais concreto da experiência, que incluiria o projeto visual da interface gráfica. A qualidade da experiência neste nível é mais fácil de constatar do que nos níveis mais abstratos, porém, a proposta do modelo é justamente aumentar a capacidade de abstração dos designers.
O modelo de Garrett também estabelece uma sequência para o projeto da experiência, do nível mais abstrato ao mais concreto. Primeiro, deve-se definir a estratégia para só então passar ao escopo. Pular as etapas seria o equivalente a começar a construir um prédio começando pela fachada. Um prédio construído assim seria muito mais frágil e poderia nem parar em pé. É preciso construir o alicerce antes da fachada. A analogia com a construção civil aparece de maneira explícita no modelo, que se assemelha a um prédio cujos andares equivalem aos níveis de abstração.
Uma experiência bem projetada teria uma estratégia macro que orientaria todas as ações, um escopo bem definido, uma estrutura de navegação simples, um esqueleto de informações hierarquizadas e uma superfície atrativa. As qualidades da experiência do usuário estão implícitas em cada nível de abstração. Garrett chama esses níveis de elementos para deixar clara a importância de manter uma visão holística sobre a experiência do usuário.
Modelos normativos podem ser encontrados em normas técnicas, porém, não existe ainda uma norma técnica que trate da experiência do usuário de maneira holística. O que existe são normas técnicas que tratam de usabilidade e acessibilidade. A norma ISO/IEC 25010 sobre qualidade de software é a mais completa. Ela estabelece cinco qualidades para avaliar a qualidade em uso: eficácia, eficiência, satisfação, liberdade de risco e cobertura do contexto. Como toda norma técnica, ela propõe uma série de recomendações específicas para o produto de software, porém, não deixa claro como criar as qualidades. Diferente do modelo prescritivo, que estabelece um processo, o modelo normativo estabelece apenas o objetivo do processo.
As normas técnicas não são claras o suficiente sobre como mensurar as qualidades da experiência do usuário. Para isso, é mais adequado utilizar um modelo de mensuração. O Component Model of User Experience (CUE) é um modelo que mensura dois tipos de qualidades: as qualidades instrumentais de um produto -- utilidade e usabilidade -- e as qualidades não-instrumentais -- estética visual, status social e comprometimento. Além disso, ele também mede os impactos emocionais e as consequências a longo prazo da experiência do usuário. O modelo conta com um instrumento de avaliação chamado meCUE, que é basicamente um questionário com perguntas subjetivas e respostas em escala do tipo Likert.
Diferente do modelo de avaliação, que depende da avaliação subjetiva do usuário, o modelo preditivo consegue prever algumas qualidades da experiência do usuário a partir de dados objetivos. O modelo Goals, Operators, Methods, and Selection rules (GOMS), criado por Stuart Card e colegas, permite prever quanto tempo uma determinada tarefa levará para ser executada. Para prever esse tempo, o modelo exige que sejam especificados todos os componentes de interface e todas as operações necessárias, na ordem em que eles acontecem para concluir a tarefa. Apesar de trabalhoso, o modelo ajuda a reduzir o tempo necessário para utilização de uma interface. Esse modelo lida apenas com a eficiência do ponto de vista do usuário, ignorando outras qualidades que podem ser mais importantes. Em muitos casos, é melhor tornar a tarefa mais longa e garantir a qualidade de compreensão do processo do que apressar o usuário sem que ele compreenda o que está fazendo.
Um modelo preditivo que leva em consideração mais fatores é a Análise da Tarefa Hierárquia. Uma vez modelada a árvore de tarefas, é possível acrescentar fórmulas que calculam a probabilidade de o usuário seguir um caminho ou outro na árvore. Também é possível prever o impacto de uma série de inputs em um resultado final. Se forem utilizadas fórmulas baseadas em teoremas cognitivos, como a Lei de Fitts, é possível antecipar alguns tipos de problemas de usabilidade. Existem ferramentas com o Concurrent Task Tree Environment para aplicativos e Machinations para jogos que permitem gerar uma série de inputs automaticamente e testar vários cenários possíveis de interação. Esse tipo de Verificação de Modelos é utilizado para sistemas críticos para calcular a probabilidade de erros humanos que, no caso de interfaces de controle de tráfego aéreo ou reatores nucleares, podem ser catastróficos.
Modelos preditivos ainda são pouco utilizados no design, porém, existe uma demanda crescente por esse tipo de modelo para aproveitar os dados coletados por aplicativos móveis. O modelo permite identificar qualidades relativas ao comportamento do usuário, como por exemplo, pressa, hesitação ou vontade de comprar e antecipar a próxima ação do usuário, reforçando ou desencorajando o comportamento. É possível com aprendizagem de máquina treinar uma base de dados com alguns exemplos de comportamentos e deixar que o sistema detecte variações parecidas nos dados. Porém, para desenvolver esse tipo de automatização, é preciso reduzir os modelos de qualidade da experiência do usuário para o que é computável, pois atualmente eles dependem muito da interpretação humana para serem úteis. Modelos preditivos precisam ser primeiramente transformados em algoritmos computáveis para serem utilizados.
Por mais que exista todo esse interesse por elaborar modelos das qualidades da experiência do usuário, a maior parte dos especialistas da prática não acreditam que seja possível mensurar todos os aspectos da experiência usuário. Law e colegas fizeram uma pesquisa em 2014 e perguntaram para designer especializados nessa área que qualidades eles achavam que poderiam ser mensuradas e quais não eram mensuráveis. Todos concordaram que é possível mensurar a eficiência, porém, a usabilidade já é mais difícil. Alguns poucos acreditam ser possível mensurar encantamento, auto-realização e amor, apesar de acreditarem que essas qualidades façam parte da experiência do usuário. Como é possível que esses profissionais acreditem provocar efeitos nesta seara se eles não se consideram capazes de mensurá-la?
A resposta está no framework proposto por pesquisadores do Google para montar modelos de mensuração das qualidades da experiência do usuário para cada projeto. O framework HEART possui cinco qualidades: felicidade (Happiness), Engajamento, Adoção, Retenção e Sucesso na tarefa. Essas qualidades podem adquirir significados diferentes através de um objetivo definido para o projeto onde o framework está sendo aplicado. Após definir os objetivos, o framework sugere definir padrões de dados desejáveis, o que ele chama de sinais. Por fim, define-se as métricas que permitem a comparação dos dados. Embora esse framework não permita medir o afeto diretamente, a utilização do acrônimo HEART para designar o framework revela a intenção dos seus autores de medir afeto indiretamente através das métricas. Se o fenômeno mensurado corresponde a algum tipo de afeto, não é possível garantir, mas os especialistas da área estão confortáveis em trabalhar com incertezas. Como vimos, o caráter emergente da experiência do usuário pede por esse tipo de abordagem e, como sempre estão surgindo novas qualidades, os profissionais dessa área estão sempre buscando objetos mais amplos para trabalhar.
Existe um tipo de modelo que pode dar conta desse caráter expansivo da profissão: o modelo ontológico. Esse tipo de modelo pode explicar de onde surgem as qualidades da experiência do usuário, sem, no entanto, fixar um grupo específico de qualidades. Os profissionais podem aplicar o modelo em diferentes situações e descobrir quais são as qualidades relevantes para sua situação de projeto.
Proponho um modelo ontológico para projetos de tecnologias digitais que busquem proporcionar experiências com qualidades específicas, o MOQUEXU: Modelo Ontológico das QUalidades da EXperiência do Usuário. O modelo é baseado em quatro categorias: a informação disponível em um material digital, a interação com a informação, a experiência de interagir com a informação e as qualidades da experiência. Nesse modelo, a interação não está formalizada no material digital, ou seja, ela não é uma informação. A interação é um processo que transforma tanto a informação quanto as pessoas que interagem. Ao interagir com pessoas e usar a informação, o usuário têm experiências diversas, que podem ou não ser avaliadas. Quando um usuário avalia sua própria experiência ou um especialista avalia a experiência de um usuário, elas podem, então, perceber as qualidades da experiência do usuário. É comum, por outro lado, que usuários não reflitam sobre suas experiências e, consequentemente, não percebam essas qualidades. Também é comum que, quando usuários percebam as qualidades, não tenham palavras e conceitos para definir o que experimentaram. Por isso, é importante que métodos de criação e avaliação de qualidades estimulem a reflexão e a instrumentação linguística.
Esse modelo pode ser utilizado tanto para a criação quanto para a avaliação de qualidades. Para a criação de qualidades, ele define o trajeto possível da informação à qualidade desejada. A cada etapa do trajeto, as possibilidades se multiplicam, o que torna difícil prever e garantir uma determinada qualidade. Porém, o modelo pode ser reaplicado em diferentes momentos do projeto, a cada ciclo de prototipação. É fundamental testar o protótipo e avaliar as qualidades da experiência, mesmo que a informação esteja incompleta. É comum os testes revelarem qualidades desejáveis e também indesejáveis. O ideal é sempre se basear nas evidências coletadas em testes para fazer mudanças no projeto. O MOQUEXU é um modelo, portanto, que serve para guiar o projeto orientado às qualidades da experiência do usuário através de um trajeto com várias possibilidades.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 21.01.2019
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