Sagrado e profano são duas categorias utilizadas pelos atropólogos para analisar símbolos sociais. O sagrado seria anormal, especial, do outro mundo, real e tabu. O profano seria normal, quotidiano, deste mundo, plebeu e permitido. Num ritual religioso como a consagração de um cavaleiro pela Rainha da Inglaterra, o sagrado toca o profano, e este se sacraliza.
Podemos estender essa categorização também para nosso âmbito profissional e classificar o indecifrável mundo dos zero e uns como sagrado e o mundo dos seres analógicos como profano. A partir dessa visão, podemos perceber o tamanho do dilema de projetar a interface que vai fazer a ponte esses dois mundos, tão diferentes. Segundo meu colega da antropologia na UFPR, Jeulliano Pedroso de Lima, a interface entre o sagrado e o profano é onde se dá a manifestação do poder, mas tudo pode acontecer. Ouça a breve entrevista:
A interface entre o sagrado e o profano [MP3] 2'
Sem a interface, toda força de processamento do computador é inútil. Torna-se apenas uma caixa-preta sem entrada ou saída. Mesmo que existam interfaces entre um programa de computador e outro, o meio por onde o sistema justifica sua existência é através da interface com o usuário final.
Assim como a Rainha da Inglaterra não pode cometer gafes durante um ritual de consagração, o sistema não pode dar sinais de fraqueza na interface com o usuário.
Todos os movimentos de execução de um ritual são previamente definidos de forma a maximizar a transmissão de seu significado. Cerimônias como essa duram horas e envolvem a ação coordenada de dezenas de pessoas. Para que não hajam falhas na perfomance, todos são muito bem treinados nos seus papéis de ante-mão.
Se esse exemplo fosse seguido na construção de sistemas, certamente teríamos interfaces mais efetivas. Antes de lançar o produto, teríamos uma sequência de testes e simulações consecutivas, analisando não só a interação, mas também a semiótica.
A Engenharia Semiótica é uma disciplina desenvolvida por pesquisadores da PUC-Rio que visa criar ferramentas para analisar signos de uma interface. Signo é o nome que se dá a união de um representante (o elemento "botão") e seu significado ("algo que pode ser clicado e executar uma ação...") .
Já falei anteriormente sobre como a semiótica pode mudar nosso posicionamento como designers de interface, assumindo-nos como comunicadores. Agora, nos concedo o status de sacerdotes.
Durante o ritual de uso do computador, serão precisamente os símbolos criados por nós que intercederão entre o sistema sagrado e o usuário profano. É exatamente isso que faz um sacerdote, em qualquer religião. O sacerdote, que faz parte do sagrado, é quem executa a perfomance simbólica que é fruida pelos participantes do ritual. Seu objetivo é que os símbolos utilizados tenham um determinado significado para sua platéia. Para aprender a fazer isso, o sacerdote estuda muito e passa por rituais de iniciação e purificação, para reforçar sua fé nos símbolos.
Um sacerdote sem fé, é como um guerreiro sem espada, vide filme O Exorcista. Mas o que é fé? A meu ver, fé seriam conhecimentos tomados como verdadeiros sem provas empíricas. O designer de interface também precisa ter fé na teoria, mesmo que não seja possível comprová-la no início. Com o passar do tempo, sacerdotes sinceros começam a ter visões espirituais e designers de interface também. O conhecimento se instala no indivíduo de tal forma, que modifica toda sua visão de mundo. A experiência comprova a teoria e os dois se tornam médiuns clarividentes. O sacerdote transmite com clareza a mensagem da divindade e o designer de interface, a do sistema.
O segredo do clarividente é que ele sabe exatamente o que sua platéia quer ouvir. Se você faz uma pergunta a um médium e ele te responde algo completamente infundado, você desconfia de sua eficácia. Agora se ele diz algo que tenha um mínimo de coerência com sua realidade, você até faz o esforço de ligar os pontos de uma mensagem cifrada.
O sacerdote pode contar com a habilidade de ler mentes, mesmo que isso não esteja ao seu controle, enquanto que o designer de interface pode contar com a empatia com o usuário, mesmo que não tenha contato direto com eles. Empatia significa "sentir o que o outro sente", ser solidário com as causas do próximo. É a qualidade que mais aprecio num designer de interface.
Já discuti aqui algumas das formas de se fazer isso: incorporando o usuário, realizando testes de usabilidade, fazendo entrevistas, organizando grupos de foco e outros métodos do Design Centrado no Usuário. Tenham fé e vocês também chegarão à verdade.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 28.04.2005
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