Design de interação era pra ser uma abordagem de design para a tecnologia da informação, vinculando à tradição do design industrial. Hoje em dia, o termo UX design (que eu traduzo como ExU design) é mais conhecido, porém, este não se vincula à tradição do design industrial e, por isso, não permite aproveitar a experiência acumulada.
Uma prática difundida no design industrial que não está sendo aproveitada pelo ExU design é a busca assistemática por inspiração. Essa prática consiste em observar o mundo por uma perspectiva poética, procurando respostas para perguntas que ainda não foram feitas. Essa busca acontece no dia-a-dia, na vida social e nas viagens que o designer industrial faz. Não é um método.
ExU designers acreditam que também fazem isso, mas na minha opinião é muito diferente buscar inspiração de pesquisar o contexto do usuário. A pesquisa é focada nas demandas do projeto específico enquanto que a busca por inspiração não tem necessariamente relação alguma com o projeto que o designer está imerso. O designer industrial não tem um objetivo específico a não ser aumentar o seu repertório cultural. Ele sabe que, eventualmente, uma dessas inspirações pode dar origem a um projeto completamente novo, mas não tem pressa.
Balancear objetivos de negócio com objetivos de usuário, manter os padrões de interação que o usuário já conhece, seguir os guias de estilo do sistema operacional são mais importantes para o ExU designer do que buscar inspiração.
Uma das consequências disso é que as interfaces projetadas por ExU designers ultimamente não tem apresentado nada de inovador. Trata-se da reprodução cultural tão somente dos padrões de interação estabelecidos, sem uma tentativa de contribuir para sua evolução. Em última análise, isso cativa o usuário a usar interfaces de maneira passiva e desengajada, ou seja, as vantagens de usabilidade são descompensadas pela vulgaridade das interações.
Buscar por inspiração para projetar interações é importante, porém, onde buscar essa inspiração? Designers industriais se utilizam de fontes conhecidas tais como revistas especializadas, galerias de arte, natureza e cinema. Eles observam as formas visuais e conceitos e reproduzem no projeto de maneira sutil, combinando numa nova composição. Porém, para designers de interação, o que interessa não é a forma visual, mas a forma da interação entre pessoas.
Desenvolver a habilidade de perceber interações entre pessoas e descobrir fontes de inspiração para isso não são tarefas nada óbvias nesse início de profissão. Compartilho aqui as fontes em que eu busco inspiração e convido aos leitores a compartilharem as suas.
Rituais são procedimento repetitivo em que se manipulam símbolos culturalmente definidos de forma padronizada. Alguns rituais geram significados a longo prazo, outros não. Exemplo de um post antigo sobre rituais aqui no Usabilidoido:
Ainda sinto falta da época em que os videogames vinham em cartuchos. Quem nasceu antes do Playstation sabe do que estou falando. O cartucho era robusto, de fácil manipulação, podia até sujar de geléia. Para colocá-lo no console era preciso certa perícia e força e um pequeno estalo parabenizava o jogador pela boa encaixada. Se o game não iniciasse, retirava-se o cartucho e assoprava-se os contatos. Na pior das hipóteses uma pequena batida dava conta do recado. Parece mágica, mas isso fazia realmente o Mario Bros aparecer de novo. Compare com os consoles de CD e note como o ritual é mais pobre. Abre-se a caixinha do CD, coloca-se na bandeja, fecha e pronto, o game está carregando. Se não der certo, não há muito o que fazer. CD riscado vai pro lixo.
Eu até desenvolvi um método para analisar rituais, mas nunca usei de fato. Na minha busca por inspiração, prefiro uma abordagem mais solta. Porém, registrar a inspiração é essencial para se lembrar depois. Uma maneira bem interessante é através da fotografia. Um livro que demonstra isso bem é o Thoughtless Acts da IDEO.
A tecnologia de registro permite perceber certos rituais que tem uma duração maior do que o instante. Os time-lapse do filme Koyaanisqatsi, por exemplo, permite ver os rituais coletivos que a sociedade urbana celebra diariamente. Sem esse recurso, seria muito difícil perceber a repetição dos atos.
Desde criança eu gostava de filmes de ficção científica, mas recentemente percebi que eles são extremamente ricos para inspiração. Estes filmes apresentam novas tecnologias em novos contextos, novas maneiras de viver em sociedade e ser humano. Isso alimenta a imaginação sobre um futuro ideal (utopia) ou catastrófico (distopia).
Aqui no Usabilidoido há uma seção de resenhas de filmes especialmente interessantes para o design de interação. Esses filmes mostram novos tipos de interfaces, talvez impossíveis de serem implementadas, mas isso não é o que me interessa mais. O que eu presto atenção é na maneira como as pessoas interagem pela tecnologia, que tipo de novas relações, dilemas, e desafios éticos elas precisam dominar.
Minority Report trouxe várias idéias interessantes para novas interfaces no contexto de uma sociedade em que a vigilância é total. Esse contexto não deve ser negligenciado pois uma coisa vem junto com a outra: transparência nas interfaces e transparência na vida privada.
Inspirados nos filmes de ficção científica, designers de interação começaram a fazer seus próprios filmes também, visando explorar o que seria possível num futuro não tão distante. As ficções projetuais (ou ficções de design como eu chamava antes) são ainda mais relevantes do que a ficção científica, pois trabalham com tecnologias que já estão disponíveis ou que estão quase lá.
Eu descubro ficções projetuais acompanhando vários canais no Vimeo. Quando encontro uma boa, posto ela no Futurologias, um Tumblr que mantenho junto com o Rodrigo Gonzatto outro designer de interação que se inspira em ficções. Na verdade, o Gonzatto vai além e orienta seus alunos a produzirem ficções projetuais. Ano passado, a trupe Marcos Balbinot, Miguel Beckers e Rafael Lange lançou o curta Sense que mostra como seria a vida de um brasileiro com implantes cerebrais. O que eu acho mais inspirador nesse projeto é acreditar que é possível pensar esse tipo de futuro também no Brasil e não só nos países pólos produtores de tecnologia.
Quando ensinava design de interação, minhas primeiras aulas eram sobre jogos e brincadeiras de criança. Na minha palestra no Interaction 12 em Dublin eu propus que as brincadeiras de criança eram o design de interação vernacular. Vários designers experientes incluindo um diretor de design da Microsoft vieram me agradecer pela palestra porque eu havia dado um nome para algo que eles já faziam há tantos anos.
Anos atrás eu gravei um vídeocast inteiro sobre brincadeiras aplicadas a design de interação. Sobre videogames, tenho uma série de slides sobre o que aprendi jogando.
A biomimética (também conhecida como biônica) é uma fonte conhecida de inspiração no design industrial. Basicamente, consiste em observar processos similares na natureza e copiar alguns elementos. Se olhar com cuidado, a natureza oferece exemplos de design fantásticos, como a "embalagem" da banana, que demonstra alto grau de usabilidade.
Mais especificamente sobre interação na natureza pode-se dizer que o sexo é a interação original. Acredite se quiser, eu já criei recomendações para redes sociais inspiradas no ato sexual. Um exemplo de biomética no nível das interações é a Plataforma Corais, uma ferramenta de gestão de projetos colaborativos em que cada projeto morto serve de base para novos projetos, uma característica dos recifes de corais.
A arte sempre foi e deve continuar a ser a principal fonte de inspiração para designers, mesmo que esses estejam vinculados com o desenvolvimento de tecnologia. Na verdade, existe uma vertente da arte contemporânea que explora justamente essa interface com a tecnologia: a Arte e Tecnologia.
Quem mora em São Paulo conhece bem essa vertente graças a festivais com o FILE e a bienal Emoção art.ficial. O último FILE que eu fui em 2011 me decepcionou bastante pois os projetos deixaram de apresentar conteúdos e ficou muito focado na gratificação pela interação rápida, com efeitos gratuitos e sem profundidade.
Independente dos festivais, artistas como Eduardo Kac, Mariana Manhães e Paulo Nenflidio e o coletivo Gambiologia me inspiram com suas obras. O que eu acho legal no trabalho deles é que eles destróem o vínculo entre tecnologia e utilitarismo, permitindo experimentar a tecnologia também para fins estéticos. O teclado de furadeiras do Paulo Nenflidio é um exemplo dramático dessa profanação.
Conclusão
Resumindo, qualquer atividade humana que envolva um baixo grau de formalização pode trazer inspiração a um designer de interação. Devido ao computador ser um meio onde as interações estão altamente formalizadas, minha recomendação principal é sair da frente do computador quando for buscar inspiração nem que seja para assistir a um filme numa outra tela menos formalizada.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 11.03.2015
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