Na Psicologia Cognitiva a emoção era considerada como um resquiço de instintos animais e não teria participação na formação do pensamento. Entretanto, estudos recentes apontam para a indissociabilidade entre sistema cognitivo e afetivo. Enquanto a cognição serve para entender as coisas, o sentimento serve para julgar.
No seu livro Emotional Design, Donald Norman separa o sistema afetivo em três níveis: visceral, comportamental e reflexivo.
O impulso natural e automático de resposta ao estímulo sensorial está no nível visceral. O frio na espinha ocasionado por uma freiada inesperada do carro é uma resposta visceral. Sair do carro batido para discutir com o outro motorista que provocou a freiada é uma resposta comportamental, pois se trata de uma prática comum no trânsito. Entretanto, a pessoa pode conter sua frustração, dar meia volta e ir embora se estiver com pressa para chegar a uma reunião de trabalho. O nível reflexivo pode impedir respostas naturais dos níveis visceral e comportamental.
O problema dessa abordagem, segundo De Paula e Dourish, é que classifica estímulos e respostas em níveis rígidos e diminui a importância da situação onde eles ocorrem.
O estímulo olfativo, sonoro e visual de estar próximo de uma pessoa vomitando no ônibus pode causar enjôo. Norman diria que se trata de uma reação visceral ao odor desagradável, aumentada pelo nível comportamental, pois é sinal de que o alimento que as pessoas que estão ao lado comeram também podem estar fazendo mal, já que em sociedades primitivas as pessoas compartilhavam o mesmo habitat e, consequentemente, o mesmo alimento. Já as pessoas que não sentem enjôo estariam sobrepujando a reação visceral e comportamental através do nível reflexivo. Elas entenderiam que o vômito alheio não tem nada a ver com si mesma e que lhe traria desvantagens sentir a mesma coisa.
Em outra situação de vômito em público, como por exemplo logo após a ingestão do chá Ayahuasca num ritual religioso, a reação visceral seria a mesma, mas adquiriria uma conotação comportamental característica da cultura ritual. A crença difundida pelos grupos União do Vegetal (UDV) e Santo Daime é de que o vômito seria uma forma de limpeza espiritual, muito comum entre os novatos. Para a pessoa deixar de ser considerada novata, ela precisa aprender a conter a ânsia de vômito, ou seja, sobrepujar a reação visceral.
Até aqui, o modelo de Norman ainda tem fôlego explicativo, mas a partir do momento em que encaramos a emoção como uma teia intrincada de sentimentos ao invés de mero ato reflexo, ele demonstra-se insuficiente.
Segundo depoimentos colhidos por Cazenave, as primeiras experiências são desagradáveis, mas com o tempo, a pessoa passa a ficar satisfeita com o vômito, pois dessa forma, suas "impurezas" são expelidas. Primeiro a pessoa considera o chá como sendo o causador do vômito e por isso a experiência é desagradável, mas conforme internaliza a cultura do ritual, ela passa a considerar o chá como um purgante espiritual, que ajuda a expelir "energias indesejáveis". É somente após a aceitação de tal crença que o vômito pode provocar sensação de satisfação e alívio. Trata-se de uma emoção culturalmente adquirida, cultivada no nível reflexivo, mas que pode vir a se tornar tão visceral quanto qualquer outra reação culturamente adquirida (raiva ao ser agredido verbalmente, euforia ao saber que o time de futebol marcou gol e etc).
Norman propõe que existe um processo padrão de manifestação dos sentimentos que acontece entre o estímulo sensorial e a resposta motora, mas a variação de significado da mesma reação emocional em diferentes situações leva-nos a crer de que não é possível tamanha generalização. Os níveis do sistema afeito ainda podem trazer luz para o estudo das emoções culturalmente situadas, mas seu relacionamento assim como proposto por Norman devem ser relativizados.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 10.06.2006
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