É possível projetar uma experiência?

Quando se apresenta a Experiência do Usuário (ExU) como um foco de projeto, surge uma questão crucial: seria possível projetar uma experiência? As respostas dos especialistas em ExU costumam ser evasivas: "não é possível projetar a experiência do usuário, pois ela é subjetiva, mas é possível projetar PARA a experiência do usuário."

Tal resposta nunca me satisfez. Se todos os recursos do projeto são direcionados para que a experiência aconteça de uma determinada maneira, não seria uma isenção de responsabilidade responder assim? Luciano Lobato provocou a audiência do EBAI em 2010 quando sugeriu que a resposta evasiva se deve à falta de mensuração de resultados de projetos dedicados à ExU.

Assim como Lobato, considero o termo experiência do usuário muito vago e por isso mesmo difícil de mensurar. Na época da palestra dele, concordei que não era possível projetar uma experiência. Porém, nos últimos anos tenho refletido que é possível sim projetar uma experiência, desde que projetar não seja entendido como controlar.

O projeto de design não é como um projeto de engenharia que precisa garantir resultados e, portanto, controlar variáveis. "Design é dar sentido às coisas", mas o sentido não é uma propriedade da coisa, mas da relação da coisa com o seu contexto. Como o designer não tem como garantir um sentido, ele cria diversas possibilidades de sentido através da configuração de forma, função e estrutura. Trata-se de um projeto complexo para uma performance emergente.

Complexo emergente

Utilizei essa abordagem na minha aula introdutória do BEPiD PUCPR e a discussão foi muito produtiva. O modelo permite superar a velha dicotomia entre forma e função, assim como a hipocrisia do foco no usuário, abrindo espaço para projetos de cunho experimental.

Projetando performances emergentes [MP3] 45 min 11mb

Como exemplo de projeto experimental, fiz um experimento durante a aula que chamei de "68". O número não é para significar que realizei previamente 67 experimentos; a função dele é deixar os participantes curiosos. Resumindo o experimento, eu peço que eles fechem os olhos, degustem um bombom Sonho de Valsa e depois descrevam a sua experiência. Porém, eu peço para eles irem fazendo isso aos poucos, na medida em que dou instruções misteriosas.

Sonho de valsa

Segue as instruções do experimento 68 para quem quizer repetir o experimento:

  1. Feche os olhos e a boca
  2. Ouça e imagine o q estou fazendo
  3. Toque no objeto deixado na sua frente
  4. Identifique o que é
  5. Dembrulhe o objeto bem devagar prestando atenção ao barulho do papel
  6. Cheire o conteúdo do objeto
  7. Abra os olhos
  8. Lamba o objeto
  9. Coma apenas a cobertura de chocolate, deixando o biscoito intacto
  10. Abra o biscoito e coloque-o na boca
  11. Chupe o biscoito
  12. Coloque o recheio na boca
  13. Não mastigue; espere que derreta
  14. Resista o máximo que conseguir antes de engolir
  15. Quando a vontade de engolir for insuportável pode engolir
  16. Depois de engolir, amasse a embalagem
  17. Descreva sua experiência
  18. Você considera que essa experiência foi projetada?

 

Na aula da pós-graduação em App Development da PUCPR, pedi que os estudantes descrevessem sua experiência em post-its individualmente para evitar qualquer influência de um sobre o outro. A comparação dos comentários confirma a advertência que Pine e Gilmore fazem em seu clássico The Experience Economy: duas pessoas não podem ter a mesma experiência, mesmo quando compartilham exatamente a mesma situação.

Comentários dos participantes do experimento 68
Foi uma experiência boa, agradável, com sensações diversas, comer algo, gostei.
Totalmente diferente das outras vezes que tinha comido um Sonho de Valsa. Pude saborear bem cada camada, parte do chocolate e recheio.
Diferente quando se come o bombom por inteiro, é possível conhecer todos os sabores e texturas.
Inicialmente já esperava que era um chocolate, mas faltava saber qual era e que sabor. Ao final, se confirmou.
Curiosidade, ansiedade, surpresa, saciedade.
Gostoso.
ANSIEDADE.
Saborosa.
Foi uma experiência diferente, mas muito bacana. Nunca tinha parado para sentir o "cheiro" de um bombom e realmente degustá-lo.
Gostei do barulho do papel-plástico, do cheiro do produto e dos diferentes gostos.
Esperei um bombom pelo som. Um chocolate pelo cheiro e o gosto. Uma boa surpresa ao morder. Difícil não engolir.
Doce. Amendoim Torrado. Crocante. Papel grudado.
Desorientado, aflito e surpreso.
Ansiedade ao ouvir o barulho e perceber o que era o objeto. Aflição de não engolir. Prazer ao morder o recheio.
Pelo som do objeto já sabia que era um bombom. Não gostei do cheiro e da embalagem. O bombom foi saboroso.
Me senti desconfiado, mas com o tempo, percebi que era apenas um bombom e então consegui perceber o propósito do experimento.
Dificuldade em abrir. Não saber o que estava fazendo.
Embalagem reconhecível. Várias camadas. Sabor comum. Vontade de comer.
Já sabia que era um bombom ao tocar. Muito doce.
Senti em partes cada sabor do Sonho de Valsa, deixando a melhor parte para o final.

Depois de compartilhar os comentários, eu pergunto aos estudantes: "então, é possível projetar experiências ou não é?" Alguns dizem que sim, outros dizem que não. Então eu explico minha visão de que design não é o mesmo que controlar e explico que no meu experimento eu não queria controlar a experiência, mas queria que tivesse um sentido diferente de comer o bombom no cotidiano, qualquer que fosse.

Na sequência, pedi para que os estudantes elencassem os fatores que influenciaram na experiência, separando entre os que estào dentro do escopo de um projeto de design e os que não estão. Abaixo, compilo as respostas de várias turmas.

Pode ser projetado Não pode ser projetado
Ambiente Experiência prévia
Áudio Expectativa
Cheiro Momento
Processo Humor
Conhecimento Cultura
Escolhas Ideologia política/religiosa
Contexto social Condição física
Desejo Grau de escolaridade
Gosto Condição financeira
Duração
Linguagem
Sentimento
Disposição
Efeito manada
Cores
Necessidade
Interesses
Emoções

A diferença que me chama a atenção nesta tabela é que os fatores projetáveis são circunstanciais, enquanto os não projetáveis são construções históricas. O pensamento dos estudantes reflete uma noção de projeto desconectado da história e da cultura, como se o projeto não fizesse parte ou não influenciasse estas coisas. Tais fatores seriam externos ao projeto e tratados como mais uma incerteza inescrutável.

Neste momento, embora eu relembre que "projetar é dar sentido às coisas" e não "controlar", ainda assim é difícil para os estudantes de design conceberem que cultura e condição física do usuário são projetáveis em escalas maiores de tempo. Todo projeto pode ser visto como uma continuação de outro projeto (ou contra-projeto). Desta, maneira, eles se acumulam e promovem transformações na sociedade, porém, num ritmo lento.

Inspirado na tese de doutorado do Caio Vassão, eu fiz a ilustração abaixo para o livro Design Livre. Tento mostrar que os projetos mais amplos são menos visíveis, mas estão lá, definindo as guias para os projetos menores.

Projeto grafico5 img 26

Eu vejo o projeto da experiência num nível intermediário entre o "projetinho" e o projeto de vida. A experiência que projetei com o bombom certamente será lembrada pelos meus estudantes, especialmente, quando eles forem degustar outro Sonho de Valsa. Minha esperança é que ela seja lembrada também no momento em que um companheiro de trabalho ou cliente queira controlar a experiência do usuário. Se isso acontecer, então ela terá contribuído para uma vida mais humilde e uma sociedade menos tecnocrática.

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 10.04.2017

Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/e_possivel_projetar_uma_experiencia.html