Design solucionista

A ideologia do solucionismo tecnológico tenta fazer as pessoas acreditarem que é possível solucionar qualquer problema com uma boa dose de tecnologia. O design solucionista reproduz essa ideologia sem questioná-la, dando forma para soluções tecnológicas que escondem as contradições que estão por traz dos problemas.

A tecnologia projetada pelo design solucionista deixa claro através de suas funções quais problemas se propõe a resolver. Cada solução ou parte da solução se torna um botão na interface do usuário, com rótulos que fortalecem essa ideologia, tais como "resolver", "bloquear" ou "comprar". Esses botões escondem as contradições que não permitem que os problemas sejam resolvidos de maneira tão simples.

A primeira contradição que o design solucionista esconde é a divisão social entre pessoas que são produtoras de tecnologia e pessoas que são meramente usuárias de tecnologia. É uma contradição, pois o uso de qualquer tecnologia também exige trabalho por parte de seus usuários para adaptar e configurar a tecnologia para solucionar problemas específicos. De certa maneira, o usuário também produz tecnologia, porém, o design solucionista faz parecer que é a tecnologia e o design que resolvem problemas por ele.

Woman biting computer

A propaganda e o branding dos produtores de tecnologia intensificam ainda mais essa divisão, transformando usuários em consumidores de soluções empacotadas. As imagens tentam criar a sensação falsa de que, para ser completo, a pessoa precisa daquela tecnologia urgentemente. Porém, alguns meses depois que a pessoa adquire a tecnologia, já começa a sentir que ainda falta algo, pois aquela tecnologia não é capaz de resolver todos os problemas satisfatoriamente. Esse sentimento fundamenta o consumismo tecnológico e a obsolescência programada.

O grupo de humoristas Casseta & Planeta conseguiu capturar muito bem esse discurso ao construir as Organizações Tabajara, uma empresa fictícia cujo bordão é "seus problemas acabaram". As empresas reais que adotam esse discurso não são tão explícitas, mas reproduzem o mesmo discurso de maneiras sutis e indiretas.

Vejamos um exemplo de design solucionista: o fluxo de denúncias do Facebook. Ele se propõe a resolver qualquer tipo de problema de comunicação que as pessoas tenham ao se comunicar utilizando a plataforma. Ao lado de cada atualização no feed de notícia tem um menu com opções para silenciar, bloquear ou denunciar o autor da atualização. O fluxo se refere à opção de fazer denúncia.

Facebook reporting guide

Digamos que o problema é uma atualização com discurso de ódio que promove a discriminação social. Neste caso, após a denúncia, um moderador humano lerá a mensagem e verificará se fere os padrões da comunidade do Facebook. O autor pode ter sua conta desativada temporariamente ou, em casos extremos, denunciado às autoridades estatais. O design solucionista faz parecer simples algo que é bem mais complexo.

O moderador do Facebook é um trabalhador precarizado que, muitas vezes, opera a partir de um país distante, trabalhando sob extrema pressão. Nem sempre ele domina o idioma da mensagem e os códigos culturais que definem, por exemplo, o que seria uma abordagem humorística sobre discriminação social, algo que é permitido pelos padrões do Facebook. Na dúvida ao fazer o julgamento, o moderador não faz nada. Por isso muitas mensagens e anúncios com discriminação social ainda circulam pela plataforma, mesmo após denúncias.

Facebook moderators

Além do fluxo de denúncia, o Facebook se propõe a resolver problemas automaticamente através de algoritmos que detectam conteúdos ofensivos para certas pessoas como, por exemplo, a nudez humana. A foto é bloqueada e o autor pode ter sua conta desativada na reincidência do ato. Os algoritmos utilizam como indicador de nudez a presença de mamilos femininos na foto. Mamilos masculinos não são considerados indicadores de nudez.

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A solução do problema dos puritanos que se sentem ofendido com mamilos femininos tem um custo: reiteram a desigualdade de gênero e desqualificam as culturas que não se ofendem pela nudez como, por exemplo, algumas tribos indígenas brasileiras.

Há alguns anos, o antigo Ministério da Cultura brasileiro postou na sua página do Facebook uma foto de indígenas que foi classificada automaticamente como um conteúdo pornográfico. O então ministro Juca Ferreira, fez uma manifestação pública criticando o Facebook, que acabou liberando as fotos. Nos padrões de comunidade, o Facebook admite:

Nossas políticas a respeito de nudez ficaram mais flexíveis com o passar do tempo. Entendemos que a nudez pode ser compartilhada por variadas razões, inclusive como forma de protesto, para conscientização sobre uma causa ou por motivos médicos e educacionais. Quando tal intenção fica clara, abrimos exceções para o conteúdo. Por exemplo, embora restrinjamos algumas imagens dos seios femininos que incluam o mamilo, permitimos outras imagens, incluindo as que mostram atos de protesto, mulheres engajadas ativamente na causa da amamentação e fotos de cicatrizes pós-mastectomia. Também permitimos fotos de pinturas, esculturas e outras obras de arte que retratem figuras nuas.

A exceção aberta para o mamilo feminino depende de uma série de informações de contexto que provavelmente não estarão explícitas na postagem. A moderação nesses casos é extremamente difícil, o que acarreta maior pressão para os moderadores precarizados.

Esses desdobramentos mostram que o Facebook não conseguiu resolver o problema social a que se propôs resolver e, pior do que isso, gerou novos problemas. O design solucionista é assim: ele reduz uma contradição social a um problema técnico que pode ser resolvido por uma solução técnica. Todas as questões sociais e culturais que estão na matriz do fenômeno são ignoradas. As soluções são ineficazes e paliativas, o que acaba justificando a necessidade de atualizações da técnica. Não resolver o problema satisfatoriamente no presente é a garantia de vender uma nova versão da tecnologia no futuro.

O design solucionista faz os usuários do Facebook acreditarem que não podem solucionar o problema por conta própria até que a próxima atualização da tecnologia chegue. Essa relação de dependência é uma estratégia antiga utilizada pelas metrópoles para justificar sua atuação nas colônias. Dada à disseminação do design solucionista, pode-se considerar que vivemos hoje uma espécie de colonialismo tecnológico, em que países produtores de tecnologia colonizam aqueles que não produzem. Além de redes sociais, os brasileiros dependem de diversas tecnologias coloniais. Porém, redes sociais se tornaram tão infraestruturais que quando elas param por algum motivo, a comunicação informal e a coordenação do trabalho ficam comprometidas. A dependência generalizada permite que as redes sociais coletem e usem dados de comportamento dos usuários com poucas restrições. Por isso, também chamam essa relação de colonialismo de dados.

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Nós não temos hoje no Brasil uma rede social nacional que tenha obtido um número de usuários tão expressivo quanto o Facebook. Porém, no passado houveram tentativas de nacionalizar esse tipo de tecnologia. Em 2006, os brasileiros se mobilizaram para ocupar massivamente o Orkut, uma rede social lançada pelo Google sem grandes pretensões. Isso resultou na transferência da equipe que desenvolvia a plataforma dos Estados Unidos para o Brasil. Ao mesmo tempo, surgiram vários competidores nacionais, como o Gazzag e o Beltrano, que copiavam as funcionalidades do Orkut. Nenhuma desses redes sociais conseguiu resistir à competição com o Facebook quando este resolveu traduzir sua interface para o Português e pisar de vez no Brasil. Hoje em dia, a dependência brasileira do Facebook e do mensageiro WhatsApp é tão grande que suspeitamos que elas tenham grande influência sobre o resultados de nossas eleições.

Apesar do Brasil não produzir tecnologia para redes sociais, ele produz uma série de outras tecnologias. Porém, essa produção muitas vezes é pautada indiretamente pela metrópole. Ao invés de importar uma tecnologia, importamos um método. Ao invés de copiar uma solução específica, copiamos o modo como a solução foi gerada.

Ao copiar o design solucionista, enfrentamos nossos próprios problemas. Porém, reproduzimos a relação de dependência entre usuários e produtores de tecnologia. Isso se reflete também na concentração geográfica da produção tecnológica, centralizada em metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro. Essas metrópoles também exercem uma forma de colonialismo tecnológico sobre as demais regiões do país.

Concetração tecnológica no Brasil

O design solucionista vai, portanto, muito além do discurso paternalista e da interface simplista. Há um processo característico que cria e dá forma às soluções tecnológicas. Este processo reduz design a um esforço racional de solução de problemas, ignorando sua relação com processos simbólicos e culturais de maior escala.

Um exemplo é o Design Sprint, criado na Google Ventures. Trata-se de um método ágil que promete resolver qualquer problema (que possa ser solucionado por uma tecnologia) em apenas 5 dias. Para compreender os problemas, dedica-se apenas 1 dia. Para solucioná-los, dedica-se 4 dias. A distribuição do tempo já deixa claro o viés solucionista. Como não há aprofundamento sobre os problemas, o resultado de um Design Sprint é sempre uma solução simplista.

Design sprint

Vejamos o case de Design Sprint conduzido pela AJ+Smart para a ShareTheMeal, uma ONG que coleta doações para pessoas que estão com fome na África através de um aplicativo. O problema principal desta ONG era que as doações estavam diminuindo ano a ano. O Design Sprint redesenhou as interfaces do aplicativo para estimular que as pessoas façam mais doações, o que realmente aconteceu. Porém, essa solução não resolve de maneira sistêmica o problema da fome, nem tampouco revela aos doadores as origens complexas do fenômeno. Ela estimula uma atitude assistencialista, desengajada e colonial por parte dos usuários que não resolve o problema da fome. Apenas ameniza.

O design solucionista assume que problemas capciosos podem ser solucionados de maneira criativa com o uso de tecnologias inovadoras. Porém, na prática, o que ele consegue são soluções parciais, paliativas ou excludentes que escondem as contradições que estão por traz dos problemas. A pesquisa em design já mostrou que as contradições que estão por traz de problemas capciosos não podem ser solucionadas, porém, elas podem ser problematizadas. Veremos, em um post futuro, como o design problematizador lida com essas contradições.

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 17.02.2020

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