Uma das primeiras coisas que toda criança aprende é a projetar, ou seja, a transformar a imaginação em realidade. Na verdade, o projetar é uma das maneiras como a criança aprende sobre suas próprias capacidades, as capacidades dos objetos ao redor, e os limites impostos pela sociedade sobre ambos.
A criança tem uma ideia e projeta essa ideia num objeto. O objeto é modificado, seja no seu significado, uso, ou funcionamento. As modificações mais radicais acontecem quando objetos são combinados de forma inusitada. Novas ideias surgem à partir dessas modificações e o projeto avança.
O projeto, vale lembrar, acontece sempre dentro de uma estória. A criança projeta para atuar na estória, contracenando com outras crianças e adultos. A narrativa, assim como o projeto, combina elementos reais e imaginários e permite a criança considerar outras possibilidades de atuação. A narrativa dá sentido ao projeto e o projeto, por sua vez, dá continuidade à narrativa. Os vídeos da etnografia Território do Brincar mostra isso claramente.
Os objetos podem também ser o ponto de partida de uma narrativa. Isso é facilmente observável se a criança for levada para um ambiente estranho, com objetos que ela não conhece, onde ela deve esperar por algum tempo um adulto fazer algo. A criança dá sentido à situação sem sentido.
A criança explora propiciações que jamais adultos considerariam. Aperta aqui, puxa dali, entorta, tenta de outro jeito. A criatividade no uso pode ir muito além da criatividade no projeto. Veja como a cadeira abaixo se transforma, pouco a pouco, num escorrega.
Crianças que são estimuladas apenas a brincar com brinquedos industrializados da maneira como eles foram projetados para ser brincados, não desenvolvem a habilidade de projetar no mesmo grau.
Brinquedos com formas realistas demais, materiais inflexíveis, marcas, manuais de instrução são as várias formas como a indústria de brinquedos evita que o projeto da criança aconteça espontaneamente. O brinquedo perde a graça rapidamente e o consumismo impera.
Por outro lado, brinquedos feitos com materiais flexíveis, modificáveis, de formas genéricas, customizáveis, modulares, tem maior durabilidade, em termos de diversão. O esforço inicial de brincar é maior, pois o sentido não vem embutido.
Algumas pessoas perdem esse despudor de projetar livremente quando crescem, outras mantém. As escolas que trabalham com pedagogia de projeto ajudam a manter e a desenvolver as habilidades de projetar, porém, em última análise, esta é uma questão social. Se a escola é um oásis no meio de uma sociedade que inibe a liberdade de projetar, não há garantia alguma de que a criança desenvolverá estas habilidades. Pode acontecer o contrário, da criança se sentir envergonhada porque em casa brinca somente com brinquedos de madeira, enquanto que o amigo brinca com bonecos de personagens de televisão famosos.
O professor Antonio Fontoura defende que design seja parte do currículo escolar básico. Eu acho uma boa ideia, porém, sem uma cultura de projeto, não fará sentido. Em primeiro lugar, é preciso desfazer essa noção de que só designer profissional faz design. Como a gente diz no Design Livre: "libertar o design do designer". Sem isso, como justificar que toda criança deve aprender design?
Em segundo, é preciso tratar as crianças como especialistas, ao invés de alunos. Trabalhar à partir do que elas já sabem fazer e expandir. Os materiais devem ser os disponíveis na região. A pluralidade de materiais, métodos, ferramentas, sentidos deve ser o principal valor a ser cultivado.
Em terceiro, a mudança deve ir além da escola. Programas de televisão, revistas, websites, lojas de brinquedos teriam que dar mais espaço ao projeto infantil. Haveriam concursos, exposições, e prêmios para o design das crianças.
O design já é livre enquanto criança. Se mantermos ele livre o resto da vida, então teremos um outro tipo de sociedade, menos consumista creio eu.
Este post foi publicado originalmente no site DesignLivre.org.Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 07.09.2013
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