Conflitos de motivos estão presentes em qualquer atividade humana, porém, nem sempre sabemos como lidar com eles. Queremos fazer uma coisa, mas não podemos. Podemos fazer aquela coisa, mas não queremos. Existem situações também em que queremos e podemos fazer, mas os outros não querem ou não podem. Aprender a lidar com conflitos de motivos é fundamental para nosso desenvolvimento pessoal e também para o desenvolvimento coletivo.
Se não sabemos lidar com conflitos de motivos, ficamos travados. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. A filosofia e a lamentação não podem nos salvar nessa hora. Precisamos agir rapidamente. Mas qual motivo devemos nos deixar levar se ambos são igualmente interessantes ou igualmente desinteressantes? Pior: e se ambos os motivos tiverem suas vantagens e desvantagens?
No cotidiano, a gente lida com esse tipo de conflito todos os dias e, mesmo sem racionalizar de maneira explícita, conseguimos passar por eles com fluidez. Porém, existem alguns conflitos de motivos, principalmente na esfera coletiva, que são muito mais complexos e demandam maior tempo, esforço e risco para serem superados.
Problemas capciosos costumam envolver diversos conflitos de motivos, também chamados de conflitos de interesses. Eu prefiro chamar de conflitos de motivos, pois não basta negociar os interesses para iniciar a ação. As pessoas precisam estar realmente motivadas para agir, uma vez que o esforço é grande.
A Teoria da Atividade considera que o conflito de motivos é inerente à interação social. Segundo essa teoria, seres humanos constituem sua realidade em sociedade, que produz uma história específica. Tudo o que é produzido pela sociedade só tem significado como parte dessa construção histórico cultural.
Quando o indivíduo se aproxima de um objeto, essa relação não é isolada da sociedade, pois o objeto já traz em si um significado construído socialmente. Esse significado não é único e nem fixo, pois pode ser modificado pela interação. Porém, existe ali uma presença da sociedade que não pode ser ignorada, especialmente, quando o objeto é compartilhado com outras pessoas ou quando há uma expectativa que ele seja compartilhado no futuro.
Sendo assim, o significado das coisas é determinado dialeticamente por duas forças: 1) a vontade que o sujeito tem de modificar o objeto e 2) a necessidade social de transformar aquele objeto. Isso é chamado tecnicamente de dialética indivíduo-sociedade, que se manifesta concretamente como um conflito de motivos. Por isso, cada vez que o indivíduo for agir com um objeto, ele estará lidando com esse conflito, com aquilo que ele quer fazer versus aquilo que ele pode, deve, ou precisa fazer de acordo com o coletivo em que faz parte.
Como se trata de um fenômeno cotidiano e necessário para a vida em sociedade, o conflito de motivos surge desde a tenra infância e a criança realiza diversas atividades para aprender a lidar com ele. Na adolescência, aprendemos a internalizar essas atividades através da imaginação e do planejamento, porém, perdemos o contato sensorial com os motivos. Isso torna mais difícil a resolução coletiva de conflitos de motivos, pois eles não estão mais tão evidentes.
Tenho explorado através de meus experimentos o retorno à atividade lúdica na idade adulta como forma de reaprender a lidar com conflitos de motivos, em especial, aqueles que exigem uma ação coletiva, tal como um problema capcioso. Munido da Teoria da Atividade, que só pode ser compreendida em sua totalidade na vida adulta, esse retorno ao lúdico oferece a oportunidade de repensar e impulsionar o desenvolvimento da criatividade e da colaboração.
A brincadeira na idade infantil é uma estratégia desenvolvida por cada cultura humana para desenvolver a capacidade de criar e colaborar em sociedade. A brincadeira é a maneira que a criança encontra para reproduzir uma atividade que ela está interessada a partir de suas observações pueris. Ela observa os adultos fazerem algo e deseja participar, mas não pode, seja porque é impedida, seja porque não sabe fazer. A parte mais difícil de compreender de uma atividade dos adultos são justamente os conflitos de motivos.
Por exemplo: o assalto. A criança observa o assalto através de conversas, representações na mídia ou analogias com outras atividades. Inicialmente ela não compreende essa interação. Quais são os motivos que estão em jogo? Porque o assaltante segura a arma e o assaltado levanta a mão? Do que essa arma é capaz? O que a arma significa nessa interação? Quem são bandidos e quem são os mocinhos?
Para entender o que é assalto, a criança não pode assaltar e nem pode pegar em uma arma de verdade. Porém, ela observou ou ouvir falar e está curiosa. A brincadeira permite que ela reproduza a atividade na imaginação, superando o conflito gerado pela sociedade, que a impede de participar de algo em que está interessada. A imaginação também é capaz de reproduzir outros conflitos de motivos, como o conflito entre assaltante e assaltado. Ao encarnar os papéis da brincadeira, a criança pode gerar motivos similares aos observados e, com isso, aprender como lidar com eles.
Conflitos de motivos imaginados em brincadeiras não são tão complexos e tensos como na atividade dos adultos e por isso mesmo que a criança consegue manipulá-los. Brincadeiras costumam ser repetidas com pequenas variações justamente para perceber os nuances e gradualmente complexificar a compreensão dos motivos em jogo.
A brincadeira também ajuda a criança a aprender a distanciar motivos de desejos, uma capacidade crucial para atingir motivos e desejos mais complexos. O bebê ainda não tem a linguagem desenvolvida e, por isso, não consegue ainda utilizar a ações mediadas complexas para realizar seus desejos. Ele quer realizar seus desejos imediatamente, não importando os meios, por isso ele chora. Como ele ainda não percebe que a escolha dos meios permite transformar seus próprios desejos, seus desejos permanecem ligados à necessidades básicas do corpo. Na medida em que o bebê domina a ação mediada, ele começa a redefinir seus próprios desejos, buscando objetos de satisfação cada vez mais complexos. Esses objetos, ao trazer novos significados para o bebê, promovem o seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e social. Assim, o bebê, que nesse momento já se tornou criança, aprende que precisa esperar para realizar desejos mais complexos, como ganhar um novo brinquedo de presente.
O distanciamento entre desejo e motivo continua a se desenvolver na adolescência conforme o indivíduo se torna um ente social relativamente independente. O adolescente aprende, dentre outras lições importantes, que seus pais não podem satisfazer todos os seus desejos e que precisam negociar com outros indivíduos que não estão tão comprometidos com seus desejos. Surge a necessidade de colaborar com outros por um interesse que nem sempre está explícito. Os indivíduos colaboram em uma mesma atividade, mas possuem desejos distintos. O motivo que os une é um meio para alcançar outro motivo onde repousa o desejo inicial, que raramente é compartilhado. Quando surge um conflito de motivos, a resolução é mais complexa, pois não está evidente o que se encontra em jogo. Às vezes nem os indivíduos estão conscientes de seus próprios desejos e motivos.
Tenho trabalhado com a hipótese de pesquisa de que o brinquedo pode ser útil para explicitar desejos e desenrolar essa rede de motivos compartilhados na fase adulta, assim como é útil na infância. A Teoria da Atividade nos explica que o brinquedo materializa um motivo social através de uma forma que ajuda a criança a compreender o motivo, por exemplo, a mobilidade é materializada na forma de um carro em miniatura. Mesmo que a criança se pergunte "por que os adultos ficam andando de um lado para o outro utilizando seus carros?", na medida em que ela brinca com o carro, ela começa a entender o motivo da mobilidade. No caso do brinquedo carro, a criança aprende que a mobilidade é fundamental para a realização de diversos outros motivos.
O brinquedo não é apenas uma representação simbólica do motivo, mas dependendo da sua forma, ele é também uma ferramenta que apóia a realização de gestos típicos da atividade imaginada. Por exemplo, um carro de brinquedos que abre portas permite realizar a operação de entrada e saída de passageiros, o que é útil para a brincadeira mesmo que a criança não tenha bonecos que caibam dentro do carrinho. Para a criança, o que importa não é a representação estática das entidades que compõe a atividade, mas sim a representação dinâmica das relações que essas entidades desempenham quando estão em movimento. A imaginação preenche os espaços de ação entre um brinquedo e outro, porém, a representação física do mecanismo de abertura da porta propicia o gesto de abertura que, por sua vez, propicia a realização de diversos atos imaginados.
Conflitos de motivos podem surgir quando a criança quer imaginar outra atividade, mas o brinquedo não propicia seus gestos típicos. Crianças costumam superar esse conflito combinando ou desmontando brinquedos, nem sempre com sucesso. O material com que foi construído o brinquedo pode impedir sua abertura e transformação. A criança pode compensar essa falta com uma dose maior de imaginação e um carro pode se tornar uma nave espacial, porém, é possível que o brinquedo perca seu poder de motivação nessa operação. O motivo do carro não pode ser simplesmente substituído, pois a forma do brinquedo expressa esse motivo o tempo todo, inclusive através da propiciação dos gestos típicos da atividade.
Com base nesse aspecto da Teoria da Atividade, alguns pedagogos recomendam que brinquedos sejam feitos de madeira e não de plástico, com formas mais genéricas e significados menos definidos. Eles observam que brinquedos de plástico costuma ter funções e significados pré-definidos a partir de uma representação estática e estratégica da atividade. O brinquedo de plástico não representa como a atividade acontece entre os adultos, mas sim como os adultos querem representar essa atividade para as crianças. O brinquedo de plástico passa a ser uma ferramenta de introdução de motivos na brincadeira da criança que obedece não só à estratégia dos pais, mas também à estratégia da indústria. Além da forma do brinquedo, a indústria aproveita a embalagem, o manual de instruções, a propaganda e a marca para investir o brinquedo de significados estratégicos, que nem sempre estão evidentes para os pais. A indústria eventualmente tenta se comunicar diretamente com a criança através de uma linguagem que os pais não compreendem.
A madeira seria melhor na opinião de alguns pedagogos, pois o material não permite criar formas tão detalhadas quanto o plástico. O brinquedo de maneira adquire, portanto, uma forma mais genérica, dando maior liberdade à imaginação da criança. Por outro lado, a criança precisa fazer maior esforço para brincar, pois os significados dos motivos materializados pelos brinquedos não estão tão explícitos. Acredita-se que essa exigência de maior esforço funcione como um estímulo à criatividade, de modo que a criança é obrigada a criar o mundo imaginário ao invés de habitar um mundo criado pela indústria.
Eu concordo com a crítica dos pedagogos, mas não acho que a escolha do material seja determinante. Trata-se apenas de um dos recursos a serem utilizados por pais e pedagogos para estimular a criatividade. Mais importante do que isso, a meu ver, é desenvolver a capacidade da criança de ressignificar motivos, inclusive com brinquedos de plástico. Essa capacidade pode ser desenvolvida com a participação dos pais na brincadeira através da subversão proposital dos significados propostos pela indústria, porém, para a criança isso introduz o conflito de motivos entre brincar o que ela deseja e brincar o que os pais desejam. Melhor do que isso é criar oportunidades para que crianças diferentes brinquem entre si e manifestem conflitos de motivo variados sem uma hierarquia pré-determinada.
O material de construção do brinquedo não determina a brincadeira sozinho, mas contribui para definir suas possibilidades junto a outros determinantes. Na Teoria da Atividade, a atividade não é determinada por materiais, pois, ela própria é considerada material. Signos são tão materiais quanto ferramentas, pois a realidade em que vivem seres humanos é construída a partir de redes de significados. Assim como a rede de motivos, a rede de significados também manifestam conflitos. Por mais que haja um esforço de fixar significados através de dicionários e outras ferramentas, sempre há disputa por significados.
Por exemplo, Lego Serious Play é um método de criatividade e solução de problemas complexo voltado para adultos que aproveita os mesmos blocos de montar com que as crianças brincam. O brinquedo é ressignificado para comunicar ideias complexas através de metáforas, aproveitando a capacidade de fazer um modelo e pensar no que dizer antes de falar.
Os modelos metafóricos deste brinquedo sério, por sua vez, estimulam leituras e interpretações diversas graças à sua ambiguidade, o que maximiza seus significados. Os adultos que jogam Lego Serious Play (re)aprendem que podem dar novos significados às coisas além de ler os significados já convencionados. Isso estimula a criatividade, porém, por outro lado, aumenta a variabilidade na execução de atividades.
A regulação da atividade é um tema fundamental da Teoria da Atividade. Segundo essa teoria, os signos que se mantém mais estáveis são aqueles que fazem parte de sistemas mais ou menos formalizados de signos, como um língua oficial de um país ou um código de conduta de um ofício. Em contraste com as ferramentas simples, os sistemas estabelecem mecanismos formais para lidar com os conflitos de motivos, tais como regras, recompensas, punições, deliberações e julgamentos. Esses signos servem para regular outros signos e, indiretamente, regular a atividade dos que se submetem ou são submetidos ao sistema de signos.
Para aprender a lidar com conflitos de motivos em sistemas de signos, as crianças passam da brincadeira ao jogo. Jogo é uma brincadeira formalizada em um sistema de signos que reproduz um ou mais conflitos de motivos. Diferente da brincadeira, que surge de um conflito espontâneo que a criança enfrenta no seu dia-a-dia, e do brinquedo, que materializa certos motivos que podem ou não entrar em conflito com a brincadeira, o jogo materializa propositadamente dois ou mais motivos em situação de conflito. O conflito pode ser simples, como ganhar ou perder uma disputa, ou complexo, como tomar uma decisão importante sobre o futuro da humanidade. Dependendo do grau de sofisticação do sistema de signos utilizado pelo jogo, podem haver diversos motivos em conflitos em numa única decisão.
A atividade de jogar, entretanto, não pode ser reduzida ao sistema de signos. A mesma ressignificação, adaptação e mudança que as crianças fazem com os brinquedos e brincadeiras também é realizada com os jogos. As pessoas interpretam, burlam e redefinem as regras do jogo enquanto jogam, porém, mais do que isso elas criam uma situação imaginária que corresponde a uma atividade existente ou ficcional. Essa situação possui diversos signos, muito além daqueles formalizados no sistema. Quanto mais rica se torna a rede de motivos e significados proporcionados pelo jogo, maior é a imersão dos jogadores na situação imaginária. Não é à toa que alguns jogos são chamados de universos.
Jogos proporcionam aprender a lidar com conflitos de motivos extremamente complexos, como aqueles vinculados a problemas capciosos, o que atrai não só crianças e adolescentes, mas também adultos. Jogos sobre mudanças climáticas, pandemia e diplomacia de guerra colocam os conflitos de motivos como principal elemento da experiência. Quando o sistema de signos é sofisticado o suficiente, é possível realizar ações coletivas coordenadas com alto grau de complexidade. Ao invés de se tratar do reconhecimento dos elementos essenciais de uma atividade, tal como a brincadeira de criança, o jogo apresenta uma reflexão madura sobre a atividade. O jogo permite executar ações complexas em um sistema de signos que permite a entrada e saída da situação imaginária.
Devido à sua capacidade de representar com precisão conflitos de motivos, alguns jogos são considerados simuladores. Nesse caso, o jogador não joga para se divertir, mas para aprender a participar de uma atividade existente, planejar uma atividade futura ou para desenvolver alguma habilidade. Simuladores com conflitos de motivos são utilizados na reabilitação de pacientes que sofreram lesões cerebrais e têm dificuldade para tomar decisões e na educação de crianças autistas que têm dificuldade para lidar com sentimentos. Com múltiplos jogadores em tempo real, simuladores podem reproduzir situações de emergência que exigem a resolução rápida de conflitos de motivos, tais como terremotos e incêndios.
Jogos simuladores buscam criar uma situação imaginária o mais parecido com a situação real o que, muitas vezes, desperdiça a capacidade transformadora da situação imaginária. Ao invés de criar uma alternativa à realidade em que se pode fazer algo que ainda não é possível e, dessa maneira, descobrir como tornar possível, os jogos simuladores costumam representar uma realidade fixa. Não existe um conflito de motivos entre a vontade de agir e a possibilidade de agir, como na brincadeira da criança. Existem conflitos de motivo inerentes à atividade simulada, porém, suas resoluções já estão pré-determinadas. Comparando a ação do jogador com a resolução correta, o simulador pode mensurar a performance do jogador.
Simuladores podem nutrir a sensação falsa de que o jogador está preparado para a realidade. Por isso, não se substitui experiência prática pela experiência de simulador, embora a simulação possa antecipar alguns elementos da prática. O problema principal com os simuladores nesse quesito não é a falta de realismo, mas sim a falta de liberdade para criar novos motivos. Os participantes de uma atividade estão constantemente superando conflitos de motivos através da criação de novos motivos e, fazendo assim, estão também gerando novos conflitos de motivos, seja para si próprio, seja para os demais. Para dar esse tipo de liberdade, o simulador precisa ter estruturas de interação altamente complexas que permitem a criação de novas regras entre os jogadores, o que reduz a capacidade de avaliação de performance.
Devido a essa limitação, apesar da tecnologia de jogos digitais ter avançado muito nas últimas décadas, os jogos de tabuleiro com motivos sérios tem crescido como uma alternativa viável para simulação de situações que requerem a criação de novos motivos. As regras de jogos de tabuleiro, mesmo que sejam descritas detalhadamente no seus manuais, estão sempre sujeitas à interpretação dos jogadores, o que confere um certo grau de flexibilidade. Por outro lado, essa interpretação exige um envolvimento maior dos jogadores com o jogo, o que costuma resultar em uma compreensão mais aprofundada do sistema de signos e dos conflitos que emergem a partir dele.
Devido a essa capacidade, eu preferi desenvolver um jogo de tabuleiro ao invés de um jogo digital para comunicar e validar as descobertas da minha pesquisa de doutorado. O Hospital Expansivo (2014) é um jogo sério que simula os conflitos de motivo típicos da construção de um hospital. Eu explorei uma capacidade interessante do jogo de tabuleiro semi-cooperativo: cada jogador ter um papel específico com uma série de regras diferentes, o que exige que eles cooperem para realizar motivos em comum. O conflito de motivos que anima o jogo é que, por um lado os jogadores precisam cooperar para construir um hospital funcional e lucrativo. Por outro lado, eles precisam competir uns com os outros para enriquecer. Isso leva os jogadores a experimentar estratégias complexas, tais como a dissimulação, o pacto, a traição e a gestão egoísta da informação.
Embora essas estratégias não sejam descritas pela literatura acadêmica sobre construção de hospitais, elas fazem parte da prática profissional. Aprender a perceber e lidar com tais conflitos leva muito tempo, pois tratam-se de estratégias tipicamente ocultas, que se desenrolam nos bastidores do projeto. Quando estudantes de arquitetura ou engenharia jogam esse jogo eles compreendem porque demora tanto tempo para desenvolver projetos multidisciplinares complexos como um hospital. O jogo prepara estudantes para lidar com a realidade em movimento da prática, que exige altas habilidades de comunicação e negociação além das habilidades técnicas.
O projeto multidisciplinar não se resolve apenas pela consolidação dos projetos dos diferentes especialistas ou pela transmissão de informação de um para o outro. É preciso negociar com os interessados para cocriar propostas articuladas que considerem as diferentes perspectivas. Jogos sérios podem simular essa situação através de regras interdependentes, mas os jogos de projetar vão além disso: eles são jogados como parte do próprio processo de codesign. Os resultados de um jogo de projetar costumam ser definições reais para o projeto, tais como uma lista de requisitos, uma série de soluções para problemas, um layout espacial ou um processo de trabalho. Além disso, devido à capacidade de simulação de cenários e deliberação, jogos de projetar geram também comprometimento na implementação do projeto.
Jogos de projetar são poderosíssimos para trazer à tona conflitos de motivos que estavam travando o desenvolvimento do projeto. O pretexto da brincadeira criado pela troca de papéis ou pela própria situação imaginária permite que os jogadores sejam mais explícitos em suas críticas e tensionamentos. As regras e peças do jogo auxiliam a resolução do conflito de maneira controlada, pois externalizam as ideias e problemas. Ao invés do jogador se sentir ofendido pela crítica recebida, ele consegue se distanciar mais da situação, uma vez que ela está ali representada de maneira objetiva no jogo. Os jogos de projetar ajudam a decidir quais motivos são mais fortes e dignos de materialização.
Como exemplo, posso citar o jogo de tricotar que desenvolvi para apoiar a avaliação colaborativa do projeto de um centro de diagnóstico médico na Holanda. O jogo consiste em turnos alternados de definição da circulação de usuários por um futuro edifício. O jogo utiliza a planta baixa do projeto como tabuleiro e fios enrolados em pinos como representação de caminhos. O resultado do jogo assemelha-se a um padrão de tricô, daí seu nome. Esse resultado pode ser inserido em um sistema paramétrico de projeto arquitetônico de modo a visualizar os caminhos enquanto se criam plantas baixas alternativas. No caso em que aplique este jogo, ele serviu para revelar algumas dessincronias no fluxo de trabalho de enfermeiras e pacientes, além de situações indesejadas, como a circulação de pacientes quase pelados por um corredor de acesso.
Jogos de projetar costumam ser cuidadosamente criados ou adaptados para cada projeto de modo a obter o máximo de imersão na situação de projeto e evitar a distração com regras irrelevantes. Porém, existem alguns jogos mais simples que podem ser encaixados em várias situações. Gamestorming é um tipo de jogo de projetar utilizado em fases iniciais para análise ou síntese de ideias. São jogos que utilizam post-its como cartas e folhas de flip-chart ou quadro branco como tabuleiros. A vantagem principal de tais jogos é visualizar e agregar informações que estavam distribuídas em diferentes mentes, permitindo uma ação coletiva melhor coordenada. Os conflitos de motivos costumam ser identificados e representados nos diálogos que acompanham a jogatina, uma vez que não costumam haver regras ou outros mecanismos sofisticados para lidar com conflitos nestes jogos.
Em um hospital, certa vez utilizamos o mapa da empatia para trabalhar conflitos de motivos entre uma equipe e outra. As equipes se criticavam mutuamente, mas não conseguiam se colocar na perspectiva da outra, o que dificultava chegar a determinações conjuntas que gerassem comprometimento de mudança. Cada equipe tentava provar que a outra estava errada e que só ela deveria mudar. Como era necessário mudança em ambas as atividades, o mapa da empatia foi empregado junto com outros jogos de gamestorming. Cada equipe montou o mapa sobre o que achavam que a outra equipe estava pensando, sentido, fazendo, olhando e ouvindo. Depois, as equipes trocaram seus mapas e puderam ler e corrigir os preconceitos infundados. Quanto menos preconceitos, mais pontos a equipe ganhava, estimulando que a prática da empatia se tornasse um hábito.
Os exemplos aqui descritos já devem ter deixado claro que, segundo a Teoria da Atividade, conflitos de motivos não podem ser reduzidos a uma operação lógica ou uma decisão racional que a mente do indivíduo precisa resolver. Trata-se de algo mais amplo, que pode também envolver uma decisão racional, mas que, mais do que isso, envolve um posicionamento completo do indivíduo, incluindo seu corpo, suas emoções e sua história. Quando o conflito de motivos se manifesta no coletivo, também envolve o posicionamento dos demais indivíduos, um em relação ao outro. Tanto o desalinhamento quanto o realinhamento de objetivos de um coletivo são disparados pelo conflito de motivos. Na ocasião, existe a oportunidade de criar um novo motivo para estar junto, eventualmente mais forte do que o anterior.
Para isso, os jogos dramáticos desenvolvidos em laboratórios teatrais como o Teatro do Oprimido são muito poderosos. Jogos dramáticos oferecem a possibilidade de utilizar o corpo inteiro na atividade lúdica, o que produz maior imersão e engajamento dos jogadores. O corpo entra no jogo com toda a sua história, marcas do tempo, expressividade espontânea e habilidades. O jogo dramático aquece e desautomatiza o corpo dos jogadores, preparando-os para ensaiar a transformação de sua atividade através do teatro propriamente dito ou de uma oficina de codesign.
Utilizamos jogos dramáticos em um projeto de coisa realizado na Universidade de Twente que tratava da integração de imigrantes chineses na comunidade acadêmica. Chineses trazem consigo uma cultura muito diferente da dos holandeses e, por vezes, são vítimas de preconceitos e isolamento social. Visando incluir os estudantes chineses, realizamos uma série de jogos dramáticos em que eles podiam expressar suas angústias sobre essa situação. Na sequência, foram improvisadas algumas cenas de teatro que retratam situações vivenciadas por eles nas suas tentativas de integra-se à sociedade holandesa. Uma situação específica chamou a atenção do grupo que realizava o projeto: a festa universitária. Os chineses se sentiam deslocados nesse tipo de evento, Os holandeses querem dançar com música alta enquanto bebem, porém, os chineses não costumam beber ou dançar. A coisa criada a partir desse teatro criou diversas oportunidades de interação entre chineses e holandeses além de beber e dançar junto, incluindo uma curiosa conversa com objetos. Assim, eles puderam encontrar motivos em comum para conversar e se connhecer.
Os exemplos citados aqui representam apenas algumas possibilidades de exploração da atividade lúdica no pensamento projetual. Como pudemos ver, o lúdico abre o campo de possibilidades de ação e permite imaginar as coisas como elas poderiam ser além do que elas já são. Mais do que isso, brincadeira, brinquedo e jogos estão vinculados historicamente ao desenvolvimento da vontade. Sendo assim, são caminhos para compreender e transformar atividades a partir de sua origem humana.
Segundo a Teoria da Atividade, as pessoas agem porque elas tem vontade de agir, mesmo que essa vontade esteja sujeita a um conflito de motivos. Para mudar a atividade ou o comportamento individual, é preciso introduzir um motivo mais forte do que os que já estão em efeito. Isso pode acontecer através de reflexão individual ou deliberação em grupo. Na minha prática de pesquisa, a atividade lúdica demonstrou ser extremamente útil para esse tipo de transformação autodeterminada, que não surge da vontade única de um líder poderoso. O artigo que publiquei junto com minha colega de doutorado Julia Garde na Simulation & Gaming contém 3 estudos de caso de transformações estimuladas por jogos de projetar no design de serviços. Esse artigo também inclui um modelo de como encaramos a atividade lúdica como parte da atividade de trabalho e não uma fuga ou distração.
Conflitos de motivos não aparecem do nada. Eles são cultivados pela cultura de uma determinada sociedade e se manifestam de várias maneiras em nossas atividades. A atividade lúdica ajuda a aprender a lidar e dominar os conflitos de motivo, mas ela não os elimina. A atividade lúdica é, portanto, uma oportunidade para imergir na realidade objetiva, que é conflituosa por natureza (humana). Se aprofundarmos ainda mais a compreensão dessa realidade objetiva, descobrimos as contradições societais que estão na origem dos conflitos de motivos experimentados individual ou coletivamente. Conhecendo tais contradições, podemos iniciar projetos de transição preparados para superá-las.
Nota de agradecimento: esse texto foi materializado a partir da transcrição de uma aula realizada por Jenifer Jang. Que ver mais textos como esse? Ajude a transcrever outras aulas.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 18.10.2020
Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/brincando_para_superar_conflitos.html