A interação parece, a princípio, uma relação entre uma pessoa e uma tecnologia. A pessoa se modifica e a tecnologia se modifica, logo, basta identificar as modificações para ver a interação. Porém, tais modificações têm efeitos além desta pessoa e daquela tecnologia. A tecnologia é deveras utilizada para interagir com outras tecnologias e também com outras pessoas.
Por isso, acredito que para entender uma interação é necessário compreender também a atividade em que ela está inserida. Nenhuma interação acontece isoladamente. As pessoas têm conhecimentos, desejos e emoções que as ligam com outras pessoas e tecnologias. Quando elas interagem, interagem para modificar essas ligações. Ou seja, toda interação faz parte de uma atividade social.
A teoria da atividade de Leont'ev diz que o cerne da atividade é o motivo. O motivo surge de uma necessidade ou desejo que uma pessoa ou um grupo de pessoas sente. A atividade é considerada social por depender da interação com outras pessoas para suprir a necessidade ou realizar o desejo. Nessa visão da sociedade, as pessoas precisam uma das outras para viver. Mesmo que uma pessoa viva isoladamente, ainda assim ela depende de outras para se satisfazer.
É possível que, devido à diferença entre desejos e necessidades, as pessoas tenham diferentes motivos para participar de uma mesma atividade. Por isso, a teoria da atividade utiliza um termo especial para agrupar motivos: objeto. Objeto é aquilo que é capaz de suprir a necessidade ou satisfazer um desejo. Por exemplo, o objeto da atividade de comer é a comida. Os motivos podem variar, mas o objeto é o mesmo. As pessoas podem estar celebrando uma data comemorativa ou apenas alimentando-se, mas o objeto continua sendo o mesmo, a comida. Sem a presença da comida, a atividade de comer não faz sentido algum.
A atividade de comer pode incluir também as ações de cozinhar a comida quando isso for uma necessidade ou desejo. Na sociedade atual, entretanto, as pessoas não precisam cozinhar para comer, pois existem restaurantes. A atividade de comer num restaurante não inclui cozinhar e, por outro lado, o motivo de cozinhar do restaurante não é comer.
Aqui encontramos a contribuição principal de Yrjö Engeström à teoria da atividade: a possibilidade de troca ou compartilhamento de objetos. O restaurante troca o objeto comida por dinheiro, porém, esse objeto não é o mesmo da atividade de comer. Os motivos são tão diferentes que as qualidades do objeto são afetadas. Enquanto os clientes querem comer algo delicioso, o restaurante quer fazer algo que dê lucro. Isso significa que nem sempre as partes saem satisfeitas na troca de objetos entre duas atividades, pois as qualidades que interessam no objeto são diferentes. Enquanto que o restaurante está preocupado com a facilidade no preparo, o custo dos alimentos e a mão de obra, o cliente que saber da textura, do sabor e da combinação de pratos.
A comida servida é, portanto, um objeto diferente da comida cozinhada no restaurante. O mesmo pode ser dito dos alimentos utilizados para fazer a comida, objeto das atividades de produção agrícola. As várias atividades da sociedade se conectam pela troca de objetos, porém, é possível também que elas compartilhem o mesmo objeto num regime de co-criação.
Por exemplo, alguns restaurantes possuem parceiros de produção agrícola com o qual compartilham informações de demanda. Estas informações são, por sua vez, utilizadas pelos produtores para agendar a produção. De certa maneira, o restaurante participa da produção dos alimentos que utiliza, ou seja, compartilha o objeto alimento com o produtor agrícola.
Existem também restaurantes que compartilham o objeto da atividade com seus clientes. Por exemplo, os restaurantes que oferecem buffet self-service, pratos customizados pelo cliente ou experiências de cozinhar junto com o cliente. Quando o objeto é compartilhado entre duas ou mais atividades, suas qualidades são negociadas pela interação, ou seja, ele adquire um caráter dinâmico. A chance desse objeto mudar suas qualidades é maior do que antes de ser compartilhado, porém, qualquer mudança esbarra nas estruturas das atividades engajadas.
Uma atividade não pode perder seu objeto, do contrário, ela deixa de fazer sentido. Se um restaurante deixar de oferecer comida, ele não será mais um restaurante. Porém, por outro lado, se oferecer apenas comida sem nenhum lugar para sentar, talheres ou pratos para os clientes, deixará de ser um restaurante também. O objeto depende de uma estrutura mais ou menos estável, que é mantida pela atividade. Essa estrutura consiste nos instrumentos, regras e divisão do trabalho da atividade.
Os instrumentos são as facas, panelas, talheres e outras ferramentas utilizadas pela atividade de cozinhar ou pela atividade de comer. Já as regras incluem a posição fixa das ferramentas pela cozinha, as normas de higiene e o modo de cobrar pela comida (a quilo, buffet-livre ou a la carte). Por fim, a divisão do trabalho define os papéis de clientes, garçons, assistentes, cheffs e proprietários no cumprimento de regras, no uso de ferramentas e nas relações com o objeto comida.
Chegamos, então, na noção de projeto desenvolvida por Andy Blunden. Projeto diz respeito à intenção coletiva de expandir o objeto para além de sua situação atual. O objeto da atividade é caracterizado pela transformação de insumos em produtos que podem satisfazer necessidades ou desejos. O projeto transforma a transformação do objeto, ou seja, ele muda tanto insumos quanto produtos. Na verdade, isso significa que o objeto expande e se transforma em outro objeto, um objeto mais avançado na história daquela atividade.
O projeto surge quando a atividade precisa se adaptar a outras atividades e novas pessoas. Os participantes de um projeto agem de maneira mais reflexiva do que quando engajados na própria atividade. É como se o projeto criasse uma meta-atividade para rever a atividade, visando com isso a expansão do objeto. O maior desafio do projeto é vislumbrar as possibilidades de expansão do objeto, pois este tem um papel tão fundamental na atividade, que é difícil imaginar como poderia ser diferente. Uma mudança no objeto implica na mudança de toda a estrutura da atividade. São muitos os fatores a serem considerados.
É comum os projetos serem interrompidos antes de considerar a expansão do objeto, focalizando apenas em mudanças na estrutura da atividade. Isso pode a médio e longo prazo promover a expansão do objeto, mas também pode acontecer o contrário: a redução do objeto. Por exemplo, um restaurante em decadência que tenta se reinventar pela reforma do espaço mas sem mexer no cardápio. Pode ser que os clientes sintam que a comida mudou mesmo que não tenha mudado ou que reclamem do aumento no preço para custeio das reformas. Tudo depende de como o objeto será conceitualizado pela atividade de comer.
O conceito do objeto é a razão de existência do projeto. O pensamento projetual surge quando o conceito do objeto é reconhecido em sua totalidade, ou seja, quando as pessoas percebem que o objeto pode ser diferente do que já é. O projeto é a tentativa de mudar o objeto através da elaboração de um novo conceito para o objeto, mais ou menos abrangente do que o conceito existente.
Por trabalhar nessa fronteira entre o velho e o novo, entre possibilidades e impossibilidades, o projeto nem sempre é compreendido pelas pessoas que não se engajadam diretamente com ele. Essas pessoas podem, por sua vez, tentar abortar o projeto ou dificultar sua implementação. A participação de stakeholders e de usuários na elaboração do novo conceito é uma prática conhecida para evitar tal resistência.
Além das forças contrárias à mudança, o projeto enfrenta riscos internos que podem levar à redução do objeto:
A ocorrência desses riscos é típica de projetos de curto prazo que visam a mudança da atividade pela estrutura, sem considerar o objeto da atividade. Em termos mais simples, tentar mudar o comportamento das pessoas através de tecnologias, sem conhecer o motivo do comportamento. Na Sociologia isso é conhecido como determinismo tecnológico. Não raras são as vezes que essas tecnologias acabam esquecidas em algum canto, devido à falta de sentido para as atividades humanas.
Design expansivo é uma teoria que coloca a atividade como base do projeto de interações. A tecnologia é pensada como um meio para acontecer a interação e não o fim do projeto. A tecnologia pode até representar o objeto com modelos virtuais, mas ela nunca substitui ou encerra o objeto da atividade. O objeto da atividade é uma relação social entre pessoas, delineada por interações entre baseadas em motivos, desejos e necessidades que não se deixam projetar de maneira simplista. O objeto não é um problema a ser resolvido por uma tecnologia e sim um problema a ser resolvido pelas pessoas engajadas na atividade. A tecnologia pode ou não ser um meio para resolver o problema, nada mais que isso.
Os estudos empíricos incluídos na minha tese demonstram que a participação de várias pessoas, tecnologias, estruturas e atividades num projeto é possível. O pensamento projetual expansivo nunca permite um projeto determinístico, pois o objeto sempre escapa a uma representação total. Ao invés de ser uma limitação, essa é considerada uma fonte de criatividade constante.
Os projetos estudados estão no escopo de design de serviços e da arquitetura, porém, acredito que a teoria do design expansivo se aplique também a qualquer tipo de projeto de interação. Esse será meu próximo passo: verificar se a teoria pode ser generalizada para outros tipos de projetos e torná-la uma teoria geral de design de interação.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 09.02.2016
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