Em 2014, escrevi um post sobre a expansão de foco na interação para o foco na experiência do usuário que acontecia na área de design. Desde então, venho pesquisando sobre as raízes históricas desta expansão.
Na minha tese de doutorado (página 144) eu avalio que dos anos 80 para os anos 90 houve uma mudança radical entre o que se considerava ser "um objeto de design" e "um objeto que não era de design"?. Até meados dos anos 80, o objeto de design era uma entidade complexa, ou seja, algo que tinha vários detalhes, vários modos, vários requisitos, vários stakeholders, várias partes e vários estilos, que deveriam ser todos combinados num projeto holístico e integrador. Um exemplo disso é um produto, uma peça gráfica impressa, um livro, uma cidade, ou o preferido dos profissionais da área: uma cadeira.
Nessa época, existiam, basicamente, duas sub-áreas na disciplina acadêmica de design: design gráfico e design de produto (ignorando as variações de nomenclatura). Hoje em dia temos diversas sub-áreas: design digital, design de moda e design de interação.
Porque surgiram estas sub-áreas no Design? Porque o objeto principal que a disciplina se preocupa expandiu para o que chamo de performance emergente. O termo performance aqui tem mais a ver com teatro do que com engenharia, ou seja, nada tem a ver com a medida de eficiência. Performance significa realizar uma ação significativa em frente a uma audiência. A atividade de design prepara o palco para diversas performances, pois não sabe quem serão os atores nem o que vai acontecer com eles no dia-a-dia. Porque essa performance não é ensaiada, qualifico de emergente. Design digital, design de moda, design de interação, todas essas novas áreas do design se preocupam com ações significativas improvisadas no dia-a-dia das pessoas.
Vejamos um exemplo dessa expansão. Um projeto clássico de design de produto é o o aparelho telefônico projetado por Henry Dreyfuss em 1937. O projeto é um primor em termos de ergonomia. Você segura o fone e ele não escorrega da mão. Você disca os números e não erra. Trata-se de uma combinação de elementos em perfeita harmonia. Você já deve ter visto ou usado modelos telefônicos parecidos com o 302, pois ele foi copiado ad nauseum. Ainda é possível ver ícones em interfaces gráficas modernas que lembram a silhueta do 302.
Esse era o paradigma do design até os anos 80, a entidade complexa. A partir dos anos 90, entretanto, surge uma diferença drástica: o objeto que o design projetava já não é mais aquela coisa física, tangível, que você consegue pegar com as mãos e mostrar como a forma reflete uma preocupação com a ergonomia. Estes novos objetos não tem uma forma estática e não podem ser compreendidos sem utilizá-los diretamente.
O exemplo icônico desta época é o PalmPilot, criado por Jeff Hawkins em 1997. Eu tive um Palm VX no começo dos anos 2000 e ele mudou minha vida. Ele era praticamente como um cérebro externo, onde eu colocava todas as minhas tarefas, compromissos, todos os livros que eu tinha para ler na faculdade. Eu praticamente não usava mais caderno.
Porém, um fatídico acontecimento me fez refletir sobre o impacto desse pequeno aparelho na minha mente. Fui assaltado próximo da minha casa e o assaltante quiz levar meu Palm VX. Tentei iludir o assaltante dizendo que era apenas um minigame mas ele não caiu. Nos próximos 2 dias, a minha vida ficou completamente desorganizada. Eu não sabia os trabalhos que precisavam ser feitos para a faculdade, não sabia que horas seriam meus compromissos, não tinha os números de telefone de ninguém, enfim, foi um caos. Percebi que havia delegado parte da minha memória para aquele dispositivo.
Na época, eu cheguei à conclusão ingênua de que eu nunca mais iria depender tanto assim de uma tecnologia. Porém, conforme me aprofundei nos meus estudos sobre design de interação, percebi que a delegação da memória não era uma escolha minha. O Palm foi projetado para funcionar como um extensão da mente.
O smartphone de hoje em dia, em contraste, não é uma extensão da mente. O smartphone é projetado para desempenhar o papel de meio de comunicação com outras pessoas. Embora o smartphone incorpore funcionalidades que já existiam no Palm e outros PDAs, seu projeto foi muito além disso. A possibilidade de instalar dezenas de aplicativos torna o smartphone uma performance emergente por excelência.
Para projetar o PalmPilot, Jeff Hawkins ficou andando 10 dias com um protótipo de madeira no bolso de sua camisa. Toda vez que sentia vontade de anotar alguma coisa, fingia que anotava algo com um toco de madeira. Prestava atenção ao tipo de informação que tinha vontade de inserir no dispositivo, imaginava as etapas da interação e transformava em requisitos de projeto. Notou que o objeto poderia ser uma extensão da mente, um cérebro portátil.
O que seria uma performance emergente? É uma performance que acontece quando se usa um objeto ou um espaço. A performance envolve manuseio, eventualmente segue um ritual, possui ritmo e tem significados. Esses aspectos são projetados, porém, de uma maneira indireta. O projeto emergente não é controlado. Mas qual seria a base para projetar algo assim tão indeterminado?
Ao longo dos anos, a atividade de design acabou encontrando na figura do usuário uma âncora para o projeto emergente. As escolhas do projeto são realizadas em função do comportamento observado, estudado, previsto ou recomendado para o usuário. Design centrado no usuário é o discurso que legitima o uso dessa âncora para o projeto emergente.
Esse discurso de design centrado no usuário surgiu em várias áreas do design com nomes diferentes, porém, o termo se consolidou após a publicação do livro escrito por Donald Norman e Stephen Draper. Norman, um psicólogo da linha cognitiva, propôs uma aproximação com a engenharia, criando o que ficou conhecido como engenharia cognitiva.
Resumindo, seria isso: "vamos estudar como funciona a mente do usuário e vamos fazer um sistema funcionar da maneira como a mente do usuário funciona". Como não se pode observar e estudar o comportamento da mente diretamente, Norman propôs um conceito fundamental para o design centrado no usuário: o modelo mental.
O exemplo clássico de modelo mental é aquele que refere-se aos pedais de automóveis. Se você for habilitado, quando entrar em um carro que nunca dirigiu antes, você saberá mais ou menos como acelerar, frear e trocar a marcha. Você entra no carro já com um modelo mental da posição e função dos pedais. Se uma montadora de carros decide inadvertidamente inverter essa ordem o que acontece? Um acidente. O modelo mental não corresponde ao mundo real.
Quem já teve a oportunidade de dirigir um carro com câmbio automático já deve ter passado pelo erro de pisar com tudo no freio numa parada brusca. O objetivo da ação não era frear apenas, mas também pisar na embreagem para evitar que o carro morresse. Como não existe o pedal de embreagem, você se confunde com o do freio. Com o tempo, você corrige o seu modelo mental e se acostuma com dirigir sem usar a embreagem.
Inicialmente, a prática de design centrado no usuário começava por estudar o modelo mental do usuário sobre produtos e sistemas similares. O produto ou sistema era, então, projetado para corresponder ao máximo ao modelo mental do usuário. O problema é que isso prejudicava a inovação e diferenciação de mercado, pois levava a um projeto conservador, parecido com os existentes.
Com o tempo, a prática de design expandiu para tentar induzir modelos mentais nos usuários. Surge então as propostas de engenharia da usabilidade, tecnologia persuasiva, design para a mudança do comportamento, design emocional e, mais recentemente, design da experiência do usuário. Essas propostas não aceitam o usuário como ele é, uma vez que tentam transformar-lo em outra pessoa. Essa outra pessoa pode ser praticamente a mesma, com uma pequena mudança, como por exemplo, uma pessoa persuadida pelo design a comprar um produto num e-commerce. Ou então, uma grande mudança, como uma pessoa que se doutrina politicamente pelo algoritmo de filtros do Facebook.
Essa transformação do usuário, entretanto, não acontece isoladamente. As pessoas interagem umas com as outras e isso afeta a transformação. A engenharia cognitiva, a teoria dos modelos mentais e o design centrado no usuário reduzem pessoas à mentes individuais, o que não ajuda a projetar esse tipo de performance emergente. Por isso, essas propostas tem caído em desuso com a expansão do objeto de design para a transformação do próprio usuário.
As propostas que estão crescendo são aquelas que incluem o usuário no projeto como cocriador de experiências, para que ele traga sua perspectiva afetiva, social e comunicativa. Isso tem gerado interesse por teorias psicológicas mais adequadas para trabalhar com o aspecto social e afetivo da experiência como, por exemplo, a teoria da atividade.
Após esse longo processo de expansão, o objeto de design encontra-se hoje entre uma experiência marcante, uma transformação pessoal e uma conquista coletiva. Os profissionais que atuam na área ainda tem dificuldade em pegar esse objeto, explicar como estão projetando-o e definir claramente onde querem chegar com seus projetos. O que fica claro é que a prática de design já não se baseia mais em certezas, previsões e requisitos. A prática expandida se preocupa muito mais com interações, flexibilidade, adaptação e produção de sentidos múltiplos. Essa expansão tem distanciado o design da engenharia e aproximado-o da arte, que já trabalha com performances emergentes há bem mais tempo.
Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 22.11.2017
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