A Banalização da Interioridade Moderna

Este é um artigo que descobri na minha gaveta, escrito em 2004, quando fazia uma disciplina sobre Estética no departamento de Filosofia da UFPR. Naquela época os blogs estavam começando a bombar no Brasil. Escrevi uma versão resumida desse artigo para o Webinsider, mas o artigo original não havia publicado aqui. Hoje em dia, acredito que o artigo é ainda mais relevante, considerando toda a banalização de interioridades promovida pelas redes sociais.

No século XVII, ainda não existia a figura do autor. Existiam escritores, mas não autores. Quem escrevia, estava sujeito ao cânone, um conjunto de preceitos que o público leitor esperava que fosse cumprido. Funcionava como um acordo tácito: “o escritor fala o que a corte quer ouvir e o Rei o subsidia.” Por isso, o escritor não tinha autoridade sobre seus leitores. Pelo contrário, o público leitor é quem acabava por determinar a obra do escritor. Era um público pequeno, constituído por cortesãos que podiam se dar ao luxo de estudar e discutir por longas horas as obras. Antes de chegar nas mãos deles, as obras deveriam ser declamadas ao Rei. Somente o bufão tinha uma certa liberdade para fazer críticas dentro da corte, já que era uma figura sem credibilidade.

Sem críticas, não havia questionamentos. O cortesão é um homem sem dualidades. Ele é o que aparenta ser, por isso a importância tão grande das vestes e adereços. O homem cortesão está no topo da pirâmide social, não há mais pra onde subir. Por isso, não deseja ser o que não é, ao contrário do burguês.

A cultura da aparência não permitia escapar as interioridades idiossincráticas do espírito humano. Somente as virtudes poderiam ser vistas pelos outros. O mal era considerado como algo externo ao ser. Quem estivesse “possuído irremediavelmente”, deveria ser atirado ao precipício.

Com a ascensão da burguesia e decadência da corte, a dualidade surge como tema de base para as obras dos escritores do século XVIII, agora sim autores. A partir do momento em que o escritor pode vender suas obras para os burgueses, ele ganha autonomia. O burguês não tinha tanto tempo quanto o cortesão para refletir sobre sua vida, para indagar, filosofar. O escritor permitia ao burguês economizar esse tempo, trazendo mastigados os frutos de suas reflexões. Assim, o escritor passa a ter autoridade sobre seus leitores e adquire uma posição mais importante nas dinâmicas sociais. Porém, ele ainda está sujeito ao seu público, mas não do mesmo jeito que o escritor de outrora. Agora, ele está diante de uma massa gigantesca, amorfa, sem rosto.

A popularização da imprensa permitiu que os livros fossem lidos silenciosamente nos aconchegos do lar. As obras não eram mais discutidas com tanto rigor como antes. Isso não fazia o público menos exigente, mas não havia um feedback direto entre o escritor e seu público. Sua obra não estava mais sujeita a um cânone, mas ainda permanecia presa às convenções sociais da época. Escritores que ousaram demais, caíram em desgraça como é o caso de Jean Jacques Rousseau.

Ele era um homem idealista e franco. Sua obra Nova Heloísa fez sucesso estrondoso porque se destinava a um público diferente do efetivo: os moradores dos arredores das cidades, os camponeses. Para entender o romance, Rousseau dizia que era preciso vivenciar o bucolismo dos bosques, respirar o ar puro das colinas e sentir o sereno nas noites claras, algo praticamente impossível na grande Paris. Curiosos, os parisienses se embeveceram de uma história num cenário idealizado, fascinados e ao mesmo tempo, descontentes com o crescimento da cidade.

Alguns anos mais tarde, Rousseau passou dos limites com suas obras Emília e Contrato Social, onde propunha alternativas ao absolutismo e à liturgia cristã. Publicou os Diálogos, tentando justificar seus pensamentos, mas abstraindo ainda mais seu leitor. Agora, ele esperava que a obra só fosse entendida no futuro. Dito e feito. Cada vez mais perseguido, Rousseau acaba se confinando numa casa nos arredores de Paris. Se sentindo em completo ostracismo, escreve os Devaneios do Caminhante Solitário, provavelmente o primeiro livro que não se destina a público algum, salvo o próprio Rousseau.

Ele afirma logo no princípio da Primeira Caminhada:

“Estas folhas não serão de fato senão um informe jornal de meus devaneios. Nelas, tratar-se-á muito de mim, porque um solitário que reflete se ocupa necessariamente muito consigo mesmo. De resto, todas as idéias estranhas que passam pela cabeça, ao caminhar, nelas encontrarão igualmente seu lugar. Contarei meus pensamentos exatamente como surgiram e com tão pouca ligação quanto as idéias da véspera têm, geralmente, como as do dia seguinte. Porém, deles resultará sempre um novo conhecimento e dos pensamentos de que diariamente se alimenta meu espírito no estranho estado em que me encontro.”

Rousseau aqui deixa claro que sua temática será a sua própria interioridade, incluindo seus pensamentos mais idiossincráticos. Para ele, já não importava mais se alguém ia gostar ou não do que ele estava escrevendo, nem mesmo se os manuscritos pudessem ser roubados ou destruídos. Queria apenas mergulhar no âmago do seu ser e desabafar.

Algumas décadas após a sua morte, Rousseau passou a ser considerado como um dos maiores escritores que a França já tivera. A sinceridade com que falava nos devaneios deixava transparecer todas as suas dualidades, seus paradoxos, enfim, toda sua humanidade. Esses temas foram abordados em profundidade pelos românticos do século XIX, sendo Rousseau considerado seu precursor.

Mais de dois séculos se passaram e agora temos uma proliferação de “Rousseaus” na Internet. Diários pessoais são publicados abertamente, para qualquer um ler. Sem custo algum e com a facilidade de um clique, os sentimentos mais profundos tomam forma e se propagam na velocidade da luz para todos os cantos do planeta, a quem interessar possa. Hoje, já chega a 500 mil em todo mundo o número desses diários virtuais, os chamados blogs. Da mesma forma que Rousseau, os blogueiros escrevem em primeiro lugar para si mesmos, na tentativa do auto-conhecimento ou do mero desabafar.

A temática dos posts (a unidade básica do texto do blog) quase sempre são elucubrações sobre sentimentos ou fatos que permeiam a vida de seu autor. Clarah Averbuck resume bem isso no trecho de um de seus posts:

"Afinal, como eu estou cansada de dizer mas continuo repetindo porque nunca param de perguntar, blog é apenas um meio de publicação para o que quer que o autor, dono e soberano do blog, queira escrever. Receita de bolo, resenha de disco, resmungos mal-amados, histórias, realidades, mentiras."
( http://brazileirapreta.blogspot.com )

O blog permite também, caso seu autor deseje, que os leitores deixem registrados os seus comentários sobre os posts logo abaixo do texto a que se referem. Assim, podem surgir longas discussões em torno de um mero sentimento pessoal. Clarah Averbuck prefere não abrir esses espaço, porque "há grandes possibilidades de virar uma barafunda enorme". Ela diz: "não quero saber se alguém concorda ou discorda com o que escrevo no meu diário." Essas palavras se assemelham e muito com as de Rousseau no momento em que desconsidera o que vão pensar dos Devaneios.

O momento dessa introspecção é tão prazeroso, que Rousseau revela na Segunda Caminhada que "saboreava habitualmente essas delícias interiores que as almas amantes e doces encontram na contemplação." Os blogueiros frequentemente exclamam em seus blogs o quão gostoso é essa prática, como faz Clarah Averbuck num dos seus primeiros posts:

Como é bom escrever no meeeeeeeeeu weblog
meeeeeeeeeeu weblog
ninguém vai reclamar que só falo de mim
uhu
alegria
querido blog
como é booooooooooooooooom
quantos quilos de eu tem nesses posts aí embaixo? Quilos!
E ninguém me encheu! Uhu!
Ok, então Clarah virou uma viciada em falar sozinha -- como se já não fosse -- em menos de 24h. Cara, blog is power.

Como fica claro nessa última citação, ao contrário de Rousseau que, apesar de adotar neologismos modernos, escolhera um vocabulário por vezes clássico para escrever seus Devaneios, os blogueiros não estão preocupados em seguir normas de ortografia e gramática. Clichês, linguagem chula e períodos desconexos são constantes nos blogs. Para entender a linguagem de um blog, é preciso primeiro entender a pessoa que está por trás dele e porque ela veio a escreve essas linhas tão tortas. Em geral, isso só é possível se o leitor fizer um bom apanhado dos posts e se colocar no lugar do próprio autor do blog. Rousseau também evoca o consentimento do leitor nas entrelinhas dos seus devaneios. Antes de ler a obra, é preciso também conhecer as passagens trágicas da vida dele, daí a necessidade de uma boa introdução ao texto, como fez a tradutora Fúlvia Moretto na edição brasileira.

A diferença maior entre Rousseau e os blogueiros é que ele é único a fazer isso no seu tempo e os blogueiros são um entre milhares. Ele foi rejeitado pela sociedade pelo seu excesso de ousadia, e os blogueiros são premiados por quanto mais ousados forem. Clarah Averbuck citada acima fez tanto sucesso com seu blog “brasileira!preta” ( http://brazileirapreta.blogspot.com ) que foi contratada para escrever dois livros e colunas em diversos periódicos impressos. Chegamos a um ponto em nossa sociedade em que o individualismo é qualidade do arquétipo de todos os homens nascidos livres.

E não é só a publicidade que incute esses valores na mente dos indivíduos, mas também a própria ciência. A psicologia moderna concentra seus esforços a ajudar a valorizar a auto-estima do indivíduo e, escrever diários pessoais é uma recomendação recorrente na terapia. Os próprios autores de blog reconhecem que escrever blog é uma forma de terapia psicológica que os faz sentirem-se melhores. Clarah Averbuck cita com frequência Charles Bukowski para resumir esse sentimento: "These words I write still keep me from total madness". O próprio Rousseau reconhece as propriedades terapêuticas de escrever sobre si mesmo:

"O hábito de entrar em mim mesmo me fez perder enfim o sentimento e quase a lembrança de meus males; aprendi assim, por minha própria experiência, que a fonte da verdadeira felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar verdadeiramente infeliz aquele que sabe querer ser feliz."

Que os blogs trazem prazer para quem os escreve isso não há dúvida, afinal ninguém é obrigado a escrever. Mas fica o questionamento se a publicidade das interioridades contribui para um constituição psicológica mais forte ou fraca. Na verdade o termo interioridade, acaba perdendo o sentido, porque a partir do momento que são divulgadas, passam a ser exterioridades. Teríamos então chegado à um ponto em que as interioridades já não existem mais? E não seria isso que define a singularidade de um indivíduo? Ou será que ainda estamos por chegar no âmago de nossas personalidades, ainda mais selvagem e incongruente?

Talvez os blogs sejam uma forma de dar poder ao indivíduo, mas por outro lado pode condicioná-lo. Quem lê, pode ser influenciado a pensar e agir da mesma forma que o autor do blog. Quem escreve, pode se sentir coagido a manter uma certa coerência (ou não) no que faz, afinal, é hipocrisia dizer que como autor de um blog público, não se preocupa de forma alguma com o que seus leitores vão pensar. Quem realmente não quer saber, guarda para si, oras. E isso também vale para Rousseau.

Fred van Amstel (fred@usabilidoido.com.br), 11.11.2011

Veja os coment?rios neste endere?o:
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