Voltei ao Brasil com a intenção de trabalhar com mudança organizacional e a primeira organização a me receber foi a Presidência da República. O governo passa por uma fase difícil e sabe que precisa mudar a maneira de trabalhar. Um dos caminhos considerados é ampliar a participação social do cidadão.
Na minha pesquisa de doutorado abordei um tema relacionado, o design participativo, que introduz uma maneira prática de participação. Fui convidado, portanto, pela nascente Secretaria Nacional de Participação Social para passar uma semana em Brasília conhecendo os seus projetos.
Me pediram a opinião sobre o Dialoga Brasil, um aplicativo que permitirá ao cidadão fazer propostas aos programas do governo federal. O aplicativo está sendo desenvolvido publicamente no GitLab e qualquer um pode dar sua opinião por lá. Uma das telas permite ao cidadão enviar uma proposta ou votar nas propostas enviadas por outros.
Fiz uma breve análise de usabilidade, mas expliquei que minha contribuição maior poderia ser no processo de trabalho. Minhas pesquisas indicam que os problemas de usabilidade têm sua raiz numa cultura organizacional que enfatiza a competição. Para elevar o grau de usabilidade, é preciso primeiro de tudo estabelecer uma cultura de colaboração.
Para demonstrar como isso poderia acontecer, propus várias dinâmicas de design participativo para trabalhar em grupo. Para começar, colocamos a interface de votação num flipchart e discutimos várias alternativas. Ao fim da discussão, fizemos uma votação para ver qual era a mais adequada.
Utilizamos também o método PSP para explorar problemas e soluções de implementação do aplicativo, como por exemplo pessoas enviando propostas ofensivas e governo não cumprindo seu compromisso de respondê-las. Devido à simplicidade e curta duração do método, pudemos até contar com a participação do secretário Renato Simões.
Essa exploração de possibilidades, nos levou à criação de um fluxo de moderação, um plano de contingência e uma lista de perguntas frequentes. Ambos foram construídos colaborativamente por toda a equipe.
Depois de avaliar o aplicativo e sua implementação, planejamos a estratégia de apresentação do serviço público. Geramos palavras chave num painel colorido e depois agrupamos elas num editor de texto colaborativo. Esse ciclo foi repetido constantemente: co-criar com materiais e sistematizar com texto colaborativo. O objetivo era estender a colaboração offline às redes online.
Baseado nessas palavras, a gente pensou em como apresentar o Dialoga Brasil de maneira tão simples que até alguém que não manja muito de computador pode entender. Propus gravar um comercial falso de televisão utilizando o celular. O objetivo era desvincular-se da linguagem técnica que utilizamos para nos comunicar enquanto desenvolvedores do aplicativo. Fizemos várias gravações, cada vez com uma explicação mais simples.
Depois de pensar o lado do cidadão, pensamos também o lado do gestor público. Como eles iriam aproveitar as propostas e as votações feitas pelo Dialoga Brasil para tomar decisões políticas e administrativas? Após discutir, chegamos à conclusão que haveria uma interface administrativa com indicadores atualizados em tempo real, o painel político.
Para construir esse painel, fizemos vários esboços de widgets em papel de grande formato, recortamos e montamos o painel atrás de uma porta. O painel mostraria quais são os temas mais discutidos do momento de maneira visual, juntamente com outras informações relevantes.
No último dia, me pediram para mediar uma discussão sobre um laboratório de tecnologias para a participação social que está sendo montado. A proposta é desenvolver outros aplicativos na linha do Dialoga Brasil. A discussão foi baseada no método mapa conceitual e diagrama de afinidades.
Depois de montar o mapa, utilizei uma técnica bem divertida para colocar os pés-no-chão: o simbolismo animal. Os participantes tinham que escolher o lugar em que quatro bichos morariam dentro do laboratório: rato, sapo, aranha e formiga. O rato simboliza a corrupção; o sapo simboliza "engolir sapo"; a aranha simboliza networking; e a formiga simboliza o trabalho árduo, "trabalho de formiguinha". Isso ajudou a identificar as área do laboratório que deveriam ser desenvolvidas com maior cuidado.
Todas essas tarefas foram planejadas colaborativamente utilizando um quadro Kanban. Essa técnica de coordenação surgiu na produção enxuta e foi adaptada para o desenvolvimento de software (Scrum). Nesse projeto, a gente adaptou para organizar também tarefas políticas.
Essa semana serviu para mostrar como o pensamento projetual (design thinking) pode ser útil também para o governo.
Uma das grandes vantagens é dinamizar os debates e discussões de que a política é feita. Ao invés de debater por posições políticas, as pessoas fazem algo enquanto falam. O que elas fazem juntas é muito mais fácil de aceitar e construir em cima do que uma fala, pois está desvinculada de uma pessoa específica.
Na minha teoria do design expansivo, eu proponho que a co-criação com materiais expande o pensamento projetual à partir do conflito político. Ambos são necessários e não devem ser alijados um do outro. O pensamento projetual que não desenvolve uma política e uma política que não desenvolve um pensamento projetual correm risco de não chegar a lugar nenhum.
Durante as manifestações de 2013, eu sugeri que o design participativo poderia trazer um pensamento projetual mais em sintonia com a demanda de participação da população brasileira.
Em 2015, tive a oportunidade de levar essa mensagem ao governo brasileiro. Apresentei uma série de slides sobre design participativo como uma abordagem para a participação social com potencial para:
Apesar de eu continuar não acreditando no poder transformador da política oficial, descobri um outro potencial ao visitar Brasília: a política do dia-a-dia dos bastidores do governo, ou seja, onde as políticas públicas são executadas. Conheci vários servidores que trabalham arduamente para transformar a cultura organizacional do governo, visando diminuir a burocracia e aumentar a participação do cidadão.
Essa maneira de trabalhar desenvolvida na Secretaria de Participação Social é completamente diferente da maneira como os servidores públicos trabalham hoje. Algumas pessoas estão apenas interessadas em fazer a parte que lhe cabe nos processos burocráticos.
Eu acredito, entretanto, que essas pessoas que participaram do processo irão replicar o pensamento projetual e a transformação irá acontecer gradualmente. Um passo fundamental é estender a participação em projetos para além de especialistas convidados como eu e outros que lá estavam. O pensamento projetual do design participativo pode ser a semente para uma nova relação entre governo e cidadão. Vejamos se cresce.
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Olá Fred!
Muito interessante a forma como foi abordado o projeto. Estou também trabalhando num projeto para o governo, e mais precisamente para uma câmara de vereadores e os impasses maiores são no quesito "politicagem" e vi que no seu projeto vc não detalhou sobre isso. Gostaria de saber se teve algo que impedisse do contato com os usuários de outros partidos, ou seja, como foi o "aceite" disso por meio deles?
Abraços e mais uma vez muito obrigada pelo conhecimento compartilhado. :)
Olá Monica! A politicagem faz parte do projeto também. Existia na equipe uma desconfiança de que o governo utilizaria o aplicativo apenas para fazer demagogia, ou seja, para dizer que tem, sem realmente se comprometer a receber propostas.
A gente explorou esse cenário no plano de contingência, com as respectivas ações a serem tomadas
- e se alguém manipula os dados? Fazer uma denúncia no Ministério Público
- e se o ministério não cumpre a promessa de responder? Realizar uma reunião com a secretaria da presidência da república
Por outro lado, existe também a preocupação de que alguns cidadãos utilizem o aplicativo para manifestar ódio ao PT, para minar os programas do governo, para difamar pessoas.
Isso a gente resolveu com o fluxo de moderação que filtra mensagens racistas, preconceituosas ou de propaganda política. Além disso, o fluxo prevê que haverão propostas favoráveis e desfavoráveis aos programas de governo. Ou seja, o sujeito que propõe, de maneira não-ofensiva, que o programa Mais Médicos acabe, este sujeito deve ter a mesma chance dos demais.
A equipe que trabalha nesse projeto está bem consciente de que ouvir as críticas do pessoal que bate panela é importantíssimo para o governo recuperar a sua credibilidade, apoio e inteligência. Por enquanto apenas 4 ministros se comprometeram a participar nesses termos (Educação, Segurança Pública, Saúde e Desenvolvimento Social), mas é possível que aos poucos outros vão se juntando.
Sobre contato com usuários, ficou decidido que primeiro eles irão envolver as pessoas que já participam das conferências nacionais organizadas pelo governo. Isso porque essas pessoas acreditam que o governo as leva a sério e não irão trolar no aplicativo. Só depois eles pretendem envolver pessoas que se identificam com a oposição ou os que são contra tudo e todos.
Boa saída. Nós estamos tentando liberar o produto aos poucos, em forma de mvp. Onde vamos colocar o fator mais complexo por primeiro. Os usuários aceitando e entendendo a lógica de funcionamento, iremos implementar os demais módulos do sistema.
Mas a primeira barreira foi: "não chamar os usuários, eles irão apenas dar pitacos e negar para favorecer o partido deles". Mas aos poucos vamos tentar imergir eles no processo de desenvolvimento sim. ;)
oi Fred! Excelente retorno heim?! Massa as ações! Super Parabéns!!!
Comento umas questões bem práticas, ok?
Inúmeros brasileiros desfavorecidos socialmente, meio excluídos também digitais, usam essas ferramentas porque não entendem seu funcionamento; não veem utilidade ou acreditam que serão ouvidos.
Creio que ajudaria programa de tv - como fala (também de rádio e para AMs que são as mais ouvidas no interior), algo bem compreensível e contendo depoimentos de cases de usos.
Ainda, devido à banda ruim que trava os programas, além do desconhecimento da existência de Apps para tais. [continuo]
Fred, apreciei imenso saber que a Educação está dentro. Já estou na expectativa de participar! E espalhar e convidar estudantes!
Deixo como registro a sugestão da criação de um dia do 'desafio', quem sabe em ou como um jogo.., para partícipes escolares se envolverem, participarem e contribuirem. Para as contribuições serem descentralizadas-distribuídas.
Grande abraço e #sucesso!
Oi Paula! Aqueles vídeos de comerciais falsos foram justamente feitos para desenvolver uma linguagem acessível para esse público pouco familiarizado com computadores. Ainda não está definida a estratégia de divulgação do aplicativo, mas talvez sejam utilizados rádio e tv para isso.
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