Design é uma área historicamente vinculada à produção de fenômenos visuais. Diversos recursos visuais são utilizados para comunicar conceitos e demonstrar usos. É relativamente fácil identificar esses recursos e apresentar para leigos as intenções por trás do projeto. Difícil é explicar como essas intenções foram formadas.
As intenções de um projeto surgem de maneira explícita, através de restrições e requisitos, ou de maneira implícita, à partir de olhares e visões. Essas práticas implícitas de design são raramente discutidas, mas são reconhecidas pelos profissionais de design. Palavras como inspiração, observação, evidência e insight são comuns no discurso profissional para explicar de onde surgem as intenções que delineiam um determinado projeto.
Essas palavras também são muito utilizadas para justificar e relatar estudos etnográficos, um método proveniente de interdisciplinaridade entre Antropologia e Design. O método se baseia na combinação de dois dispositivos visuais: o olhar antropológico e a visão projetual. Irei descrever como essas práticas se entrelaçam no estudo etnográfico, porém, devo ressaltar que elas não se restringem a este método em particular.
O olhar antropológico é uma maneira de ver o mundo que revela os significados coletivos da atividade humana em sociedade. Ao invés de ver como ação isolada de um indivíduo, o olhar antropológico busca entender a motivação coletiva por trás da ação, o que normalmente leva à história da comunidade em que o indivíduo está inserido. Qualquer ação é compreendida como expressão de uma linguagem implícita ou explícita que a comunidade vem desenvolvendo ao longo dos anos. Quando alguém faz algo, mesmo que não diga nenhuma palavra, também produz significados através de suas ações porque as pessoas da comunidade percebem essa ação como significativa.
A grande vantagem do olhar antropológico é justamente perceber os significados dessas várias linguagens e, principalmente, como elas se entrelaçam e constituem a cosmologia da comunidade. Uma ação banal que se repete diversas vezes ao dia como, por exemplo, pedir um favor a um colega pode revelar o significado atribuído à interdependência entre os membros de uma comunidade ou mesmo à ligação mística entre todos os seres. Porém, para perceber esse significado mais profundo, é preciso observar outras ações que se conectam com esta até chegar a uma percepção holística das ações, considerando-as como expressão linguística de uma cultura.
Essa percepção holística é a essência e também o desafio do olhar antropológico. Inserida numa comunidade, uma pessoa pode ser falante competente em várias linguagens e, ao mesmo tempo, não ter consciência dos significados mais profundos de suas ações. Isso porque as pessoas se acostumam a ver as coisas cotidianas sem olhar para elas. Depois que elas aprendem o significado da ação, a maior parte na infância, elas não se questionam mais porque a ação existe. A ação já vem com uma explicação embutida de sua própria existência, por exemplo, um propósito ou objetivo extrínseco que desvia a atenção para o fim da ação.
Quando um antropólogo estuda uma comunidade parecida com a que o constituiu como criança ou adulto, ele precisa se distanciar dessas explicações embutidas, pois elas não conduzem a uma percepção holística da ação. Uma das maneiras de fazer isso é utilizar a técnica do estranhamento. O antropólogo nega os significados aprendidos naquela comunidade e busca reaprendê-los, tal como se fosse um forasteiro. Ele olha para as ações do dia-a-dia como se fossem muito estranhas, perguntando constantemente o porquê de cada coisa. Eventualmente, os questionamentos banais suscitados pela técnica abrirão caminho para investigar significados mais profundos da ação.
O objetivo do estranhamento é desconstruir a explicação embutida na ação, porém, existe o risco de colocar no seu lugar um estereótipo ou preconceito. Isso acontece quando o olhar antropológico está dominado por um viés específico, por exemplo, os valores culturais de uma nação, o interesse do cliente que financia o estudo etnográfico ou o prazo para conduzir este estudo. Existe um risco muito grande de chegar a conclusões apressadas.
A metáfora de iceberg da cultura criada pelo antropólogo americano Edward T. Hall ajuda a compreender o risco do olhar apressado. Na ponta do iceberg, estão os elementos visíveis de uma cultura, tais como comida, tradições, costumes e roupas. Quem olha só para esses elementos não vê além do estereótipo. Para compreender significados profundos, é preciso identificar valores, visões de mundo e crenças básicas, além de traçar as origens históricas disso tudo. Tais elementos ficam abaixo da linha de visibilidade do iceberg e por isso são mais difíceis de compreender em profundidade.
Voltando ao Design, a profundidade do olhar antropológico está diretamente relacionada ao grau de inovação almejado pela visão projetual. Um projeto que visa atingir uma inovação incremental, ou seja, otimizar processos ou reduzir custos, não precisa de muito aprofundamento no olhar. A pesquisa pode ser rápida e superficial. Para chegar a uma inovação disruptiva, entretanto, é necessário dedicar mais tempo. Agora se você tiver os dois: bastante tempo e bastante aprofundamento, você pode chegar ao nível de inovação radical, aquela que, segundo Rito, cria novos mercados e novas soluções.
A visão projetual, diferente do olhar antropológico, está orientada para a inovação. Apesar de reconhecer a força da tradição, a visão projetual parte do princípio de que é possível mudar. O projeto reconhece a situação atual e propõe mudanças através de ações que reproduzem e, ao mesmo tempo, introduzem novos padrões. A visão projetual é realizada quando as ações de mudança antecipadas pelo projeto se tornam efetivas, ou seja, se tornam uma inovação.
Isso nem sempre acontece, entretanto. Projetos podem ser abandonados, rejeitados ou desviados de seu propósito original. A falibilidade da visão projetual é um dos grandes motivadores dessa interdisciplinaridade entre Antropologia e Design. No Design, acredita-se que o estudo etnográfico pode reduzir a chance de falha do projeto através de um desenvolvimento dialético entre visão projetual e olhar antropológico. Ao invés de desenvolver cada um em separado, um após o outro, ambos são desenvolvidos em conjunto, por interação.
Nessa dialética, a visão projetual se desenvolve calcada no que se sabe sobre a comunidade que será afetada pelo projeto. Ao invés de implementar uma tendência externa à comunidade, o projeto busca encontrar as tendências de mudança na comunidade e desenvolver propostas que amplifiquem ou catalisem ações que já estão acontecendo. Também é possível o contrário, que o projeto busque evitar ou prevenir certas ações.
Por exemplo, as gambiarras que as pessoas fazem num determinado contexto são fontes de inspiração recorrentes para a visão projetual. Isso porque a gambiarra já faz uma seleção de um problema relevante que não está sendo resolvido de maneira satisfatória na comunidade. A solução que a gambiarra apresenta pode não ser a melhor, mas o problema é patente. Com frequência, propostas de projeto inspiradas em gambiarras aproveitam parte da técnica da gambiarra, expandido a mesma com tecnologias e conhecimentos de outros contextos. Por outro lado, o projeto inspirado na gambiarra busca substituir a gambiarra e torná-la obsoleta.
Aqui fica claro que a visão projetual faz julgamentos de valor sobre as situações a partir de critérios éticos e estéticos. Com frequência, o projeto se coloca como superior à gambiarra. Raramente, se coloca em uma posição humilde em relação ao conhecimento situacional que gerou a gambiarra. Quando a visão projetual interage com o olhar antropológico, o projeto se torna humilde. Os critérios se desenvolvem de dentro para fora, à partir dos desejos e normas da comunidade. Isso evita perder tempo de projeto com ideias sem sentido, sem valor e sem poder de mobilização. Porém, uma vez definida esta base, é comum a visão projetual buscar recursos e referências de fora da comunidade para realizar suas propostas.
Ao mesmo tempo em que a visão projetual se desenvolve de dentro para fora, o olhar antropológico se desenvolve de fora para dentro. Ao invés de apenas de identificar e compreender ações relevantes ao projeto, o olhar antropológico investiga as origem das ação já com a intenção de promover mudanças. Ao invés de se perder na teia infinita de significados da cultura, o olhar se torna gradualmente mais focado no contexto do projeto onde há possibilidades de mudança. A experiência com outros contextos, outras comunidades e outras culturas é utilizado para interpretar e imaginar esse contexto.
A visão projetual é otimista e acredita que tudo é possível, bastando um projeto. O olhar antropológico é mais pé-no-chão e acredita que tudo depende da apropriação cultural. Todos os dois servem para definir e aprimorar intenções quando o projeto ainda está em suas fases preliminares. Intenções bem formadas permitem a emergência de conceitos mais robustos e inovadores. A interação entre os dois dispositivos visuais descritos aqui permite que estes conceitos tenham também maior relevância cultural para a situação de projeto, contribuindo tanto para realizar as intenções do design centrado no usuário quanto as do design participativo.
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