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Libertando futuros domesticados pelo design imperialista

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Libertando futuros domesticados pelo design imperialista

O design imperialista representa o futuro de nações subdesenvolvidas como se fosse parecido ou igual ao presente das nações desenvolvidas, como só lhes faltasse importar as tecnologias desenvolvidas para adentrar este futuro domesticado em que tudo funciona. Para que o Design Prospectivo produza futuros autônomos para seu contexto de subdesenvolvimento, é preciso romper com o design imperialista e libertar a monstruosidade do futuro que não pode ser domesticada. Em outras palavras, isso significa produzir cenários permeados de contradições entre distopias e utopias, que sirvam não só para admiração das possibilidades, mas também para sua efetiva digestão cultural.

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Gravação realizada no Ciclo de Seminários de Design Prospectivo da UTFPR, 2021.

Libertando futuros domesticados pelo design imperialista [MP3] 36 minutos

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Transcrição

Libertando futuros domesticados pelo Design Imperialista, essa fala é uma provocação para pensarmos nas possibilidades de desenvolvermos o Design Prospectivo que é abordagem que temos conversado e discutido aqui na UTFPR como uma maneira de abordar futuros no Design de maneira prospectiva e não só especulativa ou transicional, mas como uma maneira de você ativamente prospectar esses futuros para uma perspectiva anti imperialista, uma perspectiva decolonial ou descolonizadora.

Ao invés de partir de autores que falam de realidades e a partir de realidade exógenas a nossa condição, a nossa realidade que é aqui no Brasil, estou tentando partir agora de autores brasileiros ou brasileiras que falam da nossa realidade em primeira instância. Porque eu acredito que isso nos ajuda a ser mais relevantes ao que dá pra fazer aqui dentro das nossas possibilidades.

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Um desses autores, pouco conhecido no Brasil, infelizmente dada a perseguição que sofreu na ditadura militar, é Álvaro Vieira Pinto. Ele tem vários livros, mas sobre este assunto tem um livro que é na verdade dividido em dois volumes, dois volumes muito grossos, são o Conceito de Tecnologia, o volume um e o volume dois. São obras maravilhosas para entender a prospecção de futuros dada a possibilidade que temos aqui no Brasil, porque o futuro é importante para o Brasil e a tecnologia do futuro ou o futuro da tecnologia. É um livro maravilhoso com um tom gigante, eu não vou falar sobre tudo que tem nesse livro, eu vou focar somente no conceito de Domesticação de Futuro. E vou tentar mostrar como precisamos criticar esse conceito e além dele quando pensar em desenvolver o Design Prospectivo.

Domesticação do futuro

Essa Domesticação do Futuro pode ser definida de várias maneiras mas eu peguei uma parte do texto dele que ele diz assim: Em vez de negar o futuro, ou de ignorá-lo, as classes dominantes e os países centrais de desenvolvimento tecnológico, eles domesticam-no de antemão esse futuro, então o futuro deixa de ser ameaçador, ele perde o caráter de incógnita, ele não traz mais consigo qualquer mudança substancial nos status dos grupos dirigentes, ou seja, quando ele está fazendo a crítica a Domesticação do Futuro, eles está falando sobre o movimento de manter o status quo. Domesticar o Futuro para ele significa que o futuro não signifique mudanças, que o futuro signifique continuidade. Então aquela incógnita, aquela incerteza que está embutida nesse futuro que não se sabe, através da domesticação, ele se torna mais conhecido.

Outra pessoa que trabalhou com esse conceito de Domesticação de Futuro, curiosamente é o Paulo Freire que é da área da Educação. E ele usa esses termos mesmo, Domesticação do Futuro na obra A Pedagogia do Oprimido que é o texto mais conhecido dele mas também fala em Domesticação em livros como Extensão ou Comunicação, Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos. O Paulo Freire, para quem não conhece a biografia dele, colaborou muito fortemente com o Álvaro Vieira Pinto, ele se referia ao Vieira Pinto como um mestre Brasileiro, um mestre da filosofia brasileira, um mestre que tinha uma filosofia autêntica brasileira.

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Ele se apropriou principalmente de categorias como consciência crítica do trabalho do Álvaro Vieira Pinto, mas eu acredito que o conceito de Domesticação do Futuro que o Freire usa no mesmo sentido do Vieira Pinto deve ter sido fonte de alguma interação que eles co-criaram esse conceito ou ele tá fazendo uma referência velada ao Vieira Pinto, porque vejam como é parecido o conceito dele de Domesticação do Futuro. No prefácio do Pedagogia do Oprimido ele diz o seguinte:

O sectário de direita pretende domesticar o presente para que o futuro, na melhor das hipóteses repita o presente domesticado, enquanto o sectário de esquerda transforma o futuro em algo pré-estabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destinos irremediáveis.

Aqui ele está fazendo uma coisa muito interessante mostrando que o futuro, ele não deve estar dado nem do ponto de vista de manter-se como está a situação atual e nem do ponto de vista de uma utopia de que quem está ganhando continua ganhando ou de uma distopia de que quem está perdendo continua perdendo. Então, ele propõe na sequência desse trecho, que encaramos o futuro como uma construção, algo que nós podemos fazer agora no presente, que vamos determinar a partir de nossas ações, por isso ele recupera a noção de história e explica que a educação é história, que ela produz novos futuros, ela abre novas possibilidades.

Mas o Paulo Freire também usa o conceito de domesticação em um outro sentido, daí falando da domesticação dos próprios educandos. Os educandos, quando estão passando por um processo de educação formal, eles costumam ser domesticados. A prática domesticadora na educação formal tem como conotação central a dimensão manipuladora nas relações entre educadores e educandos em que, obviamente, os segundos são os objetos passivos da ação dos primeiros. O uso da palavra domesticação é uma analogia ou alusão à maneira de como se educam animais, pois parte-se do princípio que o educando não tem nenhum conteúdo, nenhum conhecimento; ele é uma tábula rasa ou um ser selvagem que precisa ser domesticado, que precisa ser trazido para civilização através do processo de educação.

Paulo Freire vai fazer referências em outras partes do texto dele sobre essa característica domesticadora da educação bancária, que já existe aqui no nosso país, no Brasil, no nosso contexto latino americano, de maneira mais ampla, desde o processo de colonização. A catequização dos povos indígenas, que inicialmente eram vistos como selvagens incivilizados pelos bandeirantes que passavam pelo interior do Brasil dizimando a população indígena, é o berço da educação bancária brasileira.

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A partir do momento que começam a surgir as missões jesuítas no Brasil, surgem até guerras entre jesuítas bandeirantes, porque os jesuítas acreditavam que era possível domesticar esses homens selvagens, enquanto os bandeirantes não acreditavam nisso. Esse afresco em ladrilho mostra os indígenas saindo da mata na condição natural de animal selvagem e se transformando gradualmente em seres domesticados no lado esquerdo, mais próximos do jesuíta Padre Anchieta, que está conduzindo o ritual de transformação. Do lado esquerdo aparecem os indígenas civilizados, já vivendo dentro de um ambiente produzido pelo que o jesuíta considerava como ser humano.

A domesticação dos povos indígenas tem o propósito específico de afirmar a superioridade dessa cultura européia, eurocêntrica que veio através de Portugal e Espanha, mas também de outros países. A cultura indígena retorna para os países europeus, não como uma contribuição cultural, um processo de transformação, uma alteridade que desafia a cultura européia, mas sim como uma conquista, uma espécie de um prêmio, um troféu a ser exibido ou uma curiosidade.

A colonização gerou um discurso de exoticismo que não permite a inclusão plena do outro: "Olha só, esses selvagens que ficavam na mata, agora eles estão domesticados, porém, eles ainda conservam alguns traços peculiares. Eles não se humanizaram completamente, eles são ainda como bestas, então que tal se a gente exibir eles em zoológicos humanos?"

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Esse é um cartaz de divulgação de um zoológico humano na França. Notem que é um trabalho de Design Gráfico que utiliza várias técnicas modernas para transformar esses corpos colonizados em mercadorias. Essa domesticação do futuro, ou melhor dizendo, essa domesticação do corpo colonizado, é uma relação que não é tão antiga assim quanto parece, porque o último zoológico humano que se tem registro data de 1958 durante a Feira Mundial de Bruxelas. Nessa feira, havia uma tenda dos congoleses que mostrava as suas habilidades de, suas técnicas artesanais ancestrais e tradicionais, e do outro lado tinha a grande atração que era uma exortação ao domínio da energia nuclear com um grande monumento à estrutura atômica.

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Então essa relação entre a tecnologia mais avançada e a tecnologia menos avançada era fundamental para justificar porque deveria existir essa domesticação, porque com isso você conseguia garantir que esses povos domesticados não se revoltassem contra os colonizadores porque eles estavam dando uma benção para esses povos. Diz assim o discurso colonizador: "Olha só como eles são atrasados; eles precisam da colonização. Por outro lado, olha só, a gente pode trocar essa tecnologia super moderna com eles e enquanto ficamos com os bens artesanais feitos por eles, que demonstram a essência da criatividade do ser humano".

Essa troca nunca foi justa, obviamente, porque o preço da tecnologia atômica é muito maior do que a tecnologia artesanal. Quem está organizando o evento, quem está falando são os dominadores, são os colonizadores, e eles vão tentar parecer mais justos e benevolentes do que realmente são.

Essa exposição acontece em uma época em que ainda existiam lutas pela descolonização política desses países, mas esse tipo de comparação ainda existe até hoje e o Design tem um papel importantíssimo na manutenção do que já existia antes do colonialismo, mas se torna mais intenso que é o imperialismo. Imperialismo é a tentativa de uma nação dominar de maneira hegemônica uma determinada região geográfica, seja através da colonização, seja através de outros processos políticos, econômicos e culturais que não envolvem necessariamente a ocupação do território.

Design imperialista

No caso do Brasil nós temos um processo de imperialismo muito forte no século vinte, a partir da influência dos Estados Unidos no nosso desenvolvimento. Isso fica patente com algumas referências constantes na mídia promovidas pelo nosso governo atual a um antigo presidente que não está mais liderando os Estados Unidos. Os Estados Unidos se colocaram não como um colonizador, mas como um parceiro no desenvolvimento dependente ou assistido do Brasil.

Os Estados Unidos oferece tecnologias com um custo menor ou até mesmo de graça para gerar dependência e depois, aí sim, receber algum tipo de recurso financeiro em troca. Uma das estratégias do imperialismo é utilizar o Design para tornar essas tecnologias parecerem ser futuristas quando na verdade não são. São tecnologias que, quando você modifica o espaço onde elas estão sendo utilizadas, elas parecem ser futuristas pelo contraste com outras realidades. Nesse caso é um vídeo, é uma curta metragem chamada Microsoft 2019, que a Microsoft fez para promover a visão de futuro que eles tinham sobre o trabalho, a colaboração na educação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

No vídeo, estamos vendo uma sala de aula na Austrália, um país desenvolvido, colaborando com uma outra sala de aula em um país subdesenvolvido que é a Índia. A na Austrália professora está mostrando para os estudantes que não sabem onde é no mapa onde fica a Índia. Os estudantes estão interagindo via videoconferência em uma época que isso ainda não era tão comum. A videoconferência permite que eles falem sobre diferenças culturais, porém, a professora não está chamando a atenção para o que eles estão conversando ali, pois essa interação parece mais como uma curiosidade, como se os estudantes indianos estivessem dentro de uma espécie de uma jaula de um zoológico humano digital, sendo mostrados para os estudantes australianos da mesma maneira como era feito na França: "olha só como eles são estranhos, olha esse alfabeto rudimentar que eles utilizam, o devanagari".

Isso gera uma diferença cultural baseada na hierarquia. Quem está do lado de cá do monitor é superior de quem está do lado de lá do monitor, porque quem está do lado de cá é quem determina as regras, o ritmo das aulas e os significados das interações. Você não vê, por exemplo, uma professora do outro lado indiano. É como se não houvesse conhecimento, autoridade ou capacidade de autodeterminação na Índia tal coo há na Austrália. Novamente, a história é contada do ponto de vista dos colonizadores e de seus suscessores imperialistas. Observem que os designers que criaram esse vídeo possivelmente não pensaram nisso, pois apenas reproduziram acriticamente um padrão cultural típico da cultura imperialista em que estavam imersos.

Aqui nós vemos um projeto intencional de imperialismo contra a Índia encabeçado pela Microsoft. Porém, existem casos ainda mais impactantes do que este no Brasil, que são os projetos de Smart Cities. Tomemos como exemplo a Smart City Laguna no Ceará. É uma cidade que está sendo financiada, desenvolvida, projetada, planejada e administrada por um grupo de empresas israelenses. Não é uma cidade que os brasileiros estão construindo no seu território a partir de sua cultura. É uma cidade que estrangeiros estão construindo no Brasil com tecnologias que também foram desenvolvidas fora do Brasil, a partir de uma cultura que não é brasileira. Isso é uma nova forma de colonização. Pense na soberania que o Brasil teria se Smart Cities como essa se espalhassem pelo país. Por enquanto, é uma questão de soberania regional, mas ainda sim bastante preocupante.

Essas tecnologias podem ser consideradas totalitárias, porque elas definem todas as interações que a pessoa vai ter naquela cidade. Não é só o projeto do desenho urbano que Israelense, mas também a tecnologia das interações do dia a dia definidas por smartfones, definidas por serviços digitais, definidas por governo eletrônico e tudo mais que estão integradas nesse chamado Planet App.

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Essas visões de futuro importadas para o Brasil escondem, através de um Design que parece futurista, as contradições que estão por trás dos modelos de interação, formas de governança, e maneiras de produzir a esfera pública. Alguns autores chamam isso de Colonialismo Digital: uma dependência de aplicativos, de redes sociais e de estruturas de logística completamente estrangeiras que, embora nos dêem benefícios, inclusive até mesmo de graça, mas que têm um custo ambiental e humano gigantesco. Esse custo não aparece no preço, da mesma maneira não aparece o custo humano da colonização e do processo de acumulação de riquezas e recursos naturais em uma determinada parte do planeta, enquanto outras partes são tratadas como meras fontes de recursos, mantendo a dependência, no caso do Brasil por exemplo mantendo uma economia baseada em produtos commodities agrícolas.

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Nessa imagem vocês vêem no centro um colonizador do Norte Global, talvez Estados Unidos ou Europeu. Acho que mais dos Estados Unidos porque as empresas que estão aparecendo ali em baixo dele são empresas dos Estado Unidos e é um problema até mesmo para a própria Europa que é muitas vezes vítima desse processo de desapropriação, não necessariamente de recursos naturais no caso da Europa mas também de recursos humanos. Por exemplo, a atenção que as pessoas devotam a esses aplicativos e os textos que as pessoas escrevem, as avaliações que elas deixam, tudo isso é apropriado de graça para que esses novos colonos possam se aproveitar e gerar mais valia de trabalhadores que muitas vezes estão precarizados ou sem remuneração trabalhando em outros países.

Muitas dessas grandes empresas de tecnologia terceirizam, fazem outsourcing da produção dos seus aplicativos para países como a Índia por exemplo, então vocês vêem no lado direito trabalhadores precarizados e do lado esquerdo outros trabalhadores precarizados na produção dos materiais como o carbono e outros minerais necessários para a produção de chips e tecnologias que são ditas avançadas mas que causam impactos ambientais terríveis.

Design do Oprimido e economia solidária

Quando vivemos uma realidade oprimida como essa, olhamos para nós mesmos e nosso Design como sendo inferior, por isso que eu gosto de fazer essa distinção entre o Design do Oprimido e o Design do Opressor olhando para a relação de imperialista com uma relação de opressão, ou melhor, uma relação de subdesenvolvimento com uma relação de opressão. Dentro dela, nunca vamos considerar o nosso Design tão desenvolvido quanto o Design desses países imperiais.

Por exemplo. O Banco Palmas criou um dos primeiros bancos eletrônicos do mundo baseado no e-dinheiro, que é uma moeda digital solidária criada por um grupo de produtores que resolvem se organizar para poder evitar a fuga de capitais do seu território pela utilização de moeda corrente. Com o aplicativo, é possível gerenciar uma moeda complementar, isso tudo com a observação, o acompanhamento e a chancela do Banco Central.

Esse tipo de recurso já ajudou a levantar da pobreza milhares de pessoas. Porém, nós olhamos para ele como se fosse um design menos desenvolvido, uma gambiarra, ou algo que nem é design. Por isso, poucas pessoas conhecem o e-dinheiro e o Banco Palmas, mas muitas pessoas conhecem o Design e o branding da Visa Electron e do Mastercard, que são importados de outros países e amplamente utilizados no Brasil. Poderíamos estar investindo mais no e-dinheiro para ter uma economia mais solidária, mas devido ao Design do Opressor, nós ficamos condenados à contribuir para a acumulação de capitais fora do nosso país. Quando vamos interagir com sistemas opressores através de interfaces digitais, nós sentimos vergonha na maneira como interagimos. Nos achamos que interagimos de uma maneira feia ou burra.

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Para fazermos um Design Prospectivo original e autônomo, para se vermos interagindo bonito, precisamos libertar os nossos futuros domesticados e assumir a nossa monstruosidade. Com isso eu quero dizer que existem algumas forças contraditórias dentro de nós que podem ser forças de mudanças positivas e não mudanças negativas que precisam ser eliminadas pela domesticação.

Monstruosidade

Então se olharmos na história como os colonos nos olhavam no começo da colonização, vamos encontrar várias referências a monstros diversos que existiam aqui no Brasil documentadas em livros em ilustrações como essa. Estou trazendo talvez um dos mais antigos que é o Ipupiara, documentado no começo do século XVI. Esse monstro vivia zanzando pelos primeiros assentamentos humanos dos colonos e também pelas aldeias indígenas. Os colonos ouviam falar dos indígenas e desse monstro, interpretavam aquilo de um jeito e alguns dos colonos diziam ter visto também, então gerava um disse que me disse. Eventualmente as pessoas faziam imagens, contavam histórias como essa, de um monstro que misturava gênero mulher e homem, misturava animal e ser humano, basicamente comia tudo aquilo que via e, ao comer, ele se transformava no que tinha comido.

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Essa monstruosidade já estava representando uma preocupação do colono de se transformar em um nativo, de se misturar aos indígenas e se tornar um híbrido, um mestiço, que acolheria hábitos mais liberais em relação aos papéis de gênero e sexualidade. Isso amedrontava a lógica moderna e Cristã, representada por outro monstro, um monstro domesticado (e domesticador), o Leviatã. O conceito de estado moderno, a própria ideia de modernidade foi construída por filósofos como Hobbes em cima da monstruosidade. Leviatã é um grande monstro, encarnado pelo monarca, que aparta todos os conflitos da sociedade. O Estado seria necessário porque os homens iriam se matar se não houvesse um opressor maior que oprima eles e que evite que eles sejam violentos consigo mesmos. Assim, a violência estatal na era moderna assume uma roupagem racional e domesticada, apesar de sua origem selvagem.

Nossos estudantes, ao refletirem sobre como essa contradição se manifesta em um país que foi à força colocado em uma condição moderna, percebemos que essa domesticação não é uma característica natural ou culturalmente válida para a nossa existência. Começamos, então, a fazer vários experimentos para botar para fora essa monstruosidade. Um deles muito interessante, realizado com alguns estudantes que estão aqui nessa sala online, a Rafaela Angelon e o João Conrado. A Rafaela inclusive, publicou artigo científico sobre a estética monstruosa que surgiu nesse experimento. Nós escrevemos coletivamente um manifesto sobre como o Design podia ser mais politicamente orientado, porém não a uma visão política apenas, mas a várias. Portanto, esse manifesto tem várias visões políticas contraditórias e isso acabou virando a temática do manifesto que se chamou Manifesto Design Dissenso.

Esse manifesto foi posicionado em um local proeminente de visibilidade dentro da UFTPR para que pudéssemos discutir as contradições entre Design, Arte, Ciência e Engenharia na UTFPR. No dia seguinte esse manifesto não estava mais lá. Tentamos investigar quem tinha retirado e porquê tinha feito isso, mas ninguém quis assumir esse feito. O diálogo que queríamos propor não era um diálogo destrutivo, veja, não houve depredação alguma do espaço público, apenas se acrescentou uma nova camada no diálogo e, infelizmente, ele foi interrompido.

Nesse experimento, não pensamos muito na questão da questão histórica. Eu acho muito mais interessante a perspectiva histórica porque ela nos ajuda a ver de onde é que vem essas contradições, como é que elas se construíram e por outro lado o que podemos fazer para superar essas contradições.

Perspectiva histórica e temporal

Primeiramente, devemos buscar referências locais e culturais para descobrir as raízes de contradições. Isso significa estudar movimentos culturais brasileiros e se inspirar neles. É uma maneira de entender as nossas contradições e não as contradições de outro país. Antrofagia, Tropicália, Fandango, Maracatu e várias formas originais daqui podem ser muito úteis para o Design Prospectivo.

Outra coisa que pode ser útil também são as artes temporais que podem nos ajudar a descobrir possibilidades de superação dessas contradições: Teatro, Fotografia, Cinema e Animação são áreas que já trabalham com cenários hipotéticos utópicos ou distópicos de mudanças que só conseguem ser percebidas ao longo do tempo, daí a relevância dessas mídias que têm e das maneiras de como usar essas mídias, dos conhecimentos dessas mídias que estão documentadas nos experimentos artísticos. Para mim, o Design Prospectivo pode aproveitar as experiências de criação de cenários de transição em outras áreas.

Projetos prospectivos

Um exemplo muito interessante é um TCC que eu co-orientei junto com a professora Marinês Ribeiro dos Santos, do Roger Silva, ele estudou videoclipes afrofuturistas que representavam contradições das desigualdades ou da igualdade racial. Eu destaco dois videoclipes aqui: a Nave da Xênia França e o Duas de Cinco + Cóccix-ência do Criolo. São videoclipes muito bem produzidos que você olha e pensa: "não deve nada para os videoclipes estrangeiros". Ao mesmo tempo, eles dialogam com a nossa realidade, o que é uma vantagem muito grande em relação a videoclipes que muitas vezes são afrofuturistas mas que falam de realidades dos Estados Unidos.

O Roger Silva também publicou um artigo acadêmico muito interessante sobre essa questão do corpo da pessoa negra estar presente no futuro, mostrando que ele também é o futuro. Isso abre a possibilidade de acreditarmos que no futuro haverão também pessoas negras e que elas também são importantes para serem incluídas nas definições democráticas de como queremos que seja esse futuro. No caso da pesquisa do Roger, não havia ainda uma especulação de como esse futuro de fato poderia ser criado por designers. Ele apenas cita projetos que foram projetados por outros.

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Isso pode ser feito através do Teatro do Oprimido. No canto esquerdo da imagem acima, vocês vêem um estudante usando uma mão de brinquedo de aço, uma espécie de uma prótese para conversar sobre política. A história que ele está contando a partir de seu personagem é que ele foi inicialmente vítima de preconceito por ter uma mão biônica. Depois, os seus chefes começaram a se aproveitar do fato dele ter uma mão mais produtiva e rápida do que os outros. Ele recebe mais trabalho mas sem necessariamente um salário maior. Ele se revoltou, se organizou, fundou um sindicato e no final da história ele acaba virando presidente do Brasil.

Escrevemos um artigo sobre esse experimento com o professor Rodrigo Gonzatto, que vai falar depois de mim. O Teatro do Oprimido foi fundamental para nós projetarmos um futuro alternativo para Curitiba, em que Curitiba se torna a capital mundial das próteses. Uma empresa fictícia chamada Optimus Body fundada em Curitiba consegue produzir próteses muito fortes, muito potentes e também muito bonitas e sedutoras, que chegam a seduzir as pessoas a amputar os seus membros saudáveis e a colocarem próteses no seu lugar.

O projeto especulativo, que assumiu o formato de vídeo mockumentário, discute como esse preconceito, inicialmente contra algumas pessoas que têm alguma deficiência, acaba sendo um preconceito invertido porque as pessoas que têm próteses começam a tentar excluir as outras. Na verdade o vídeo acaba desconstruindo a ideia do preconceito invertido, colocando em evidência as pressões mercadológicas e trabalhistas que impelem as pessoas sem deficiência a amputar seus membros: elas não conseguem emprego, pois só se admite pessoas com prótese no trabalho. É muito interessante como essa complexidade das relações sociais conseguem ser explicadas em um curta metragem de apenas cinco minutos.

Outro mockumentário bem interessante também, criado pelos estudantes em reflexão sobre o impeachment, ou melhor dizendo, o golpe da Dilma Rousseff em 2016. Eles colocaram a culpa desse golpe em uma secretária eletrônica baseada em uma inteligência artificial que tinha sido instalada pela Dilma para ajudar a gerenciar o trabalho no país e acabou gerenciando o trabalho dela. Essa inteligência artificial cometeu a famosa decisão da pedaladas fiscais, seguindo um padrão de comportamento dos presidentes anteriores, como toda boa inteligência artificial faz: reproduzir padrões.

O que aconteceu é que esse ato foi utilizado pelos oponentes, a oposição no caso, o PSDB e outros partidos, para colocar a Dilma para fora do seu cargo acusando ela de imperialismo estadunidense. É interessante porque nesse futuro, a direita brasileira é contra o imperialismo, que é um futuro obviamente diferente da nossa situação atual em que a direita apóia o imperialismo, principalmente através da defesa da liberdade de atuação das redes sociais e outras tecnologias estrangeiras.

Por fim, quero mostrar os experimentos do Teatro do Oprimido pós pandemia com o recurso teatro fórum usando máscaras digitais para representar papéis de tecnologias nas nossas interações. No centro, temos uma inteligência artificial que substituiria o trabalho de Design e tornaria esse trabalho plataformizado tal como Uber. No lado esquerdo e direito, vemos dois designers precarizados trabalhando pra essa inteligência artificial, que está simplesmente distribuindo trabalho para esses agentes precarizados, escondidos e invisibilizados pela plataforma.

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A logo encomendada pelo cliente é projetada por uma pessoa em outro lugar do mundo, mas o cliente não sabe disso, pois a inteligência artificial faz parecer que a logo foi feita automaticamente. Esse filme, na verdade esse teatro fórum, que é uma interação que fizemos com estudantes de Design da USP, levanta a questão de até que ponto somos opressores e até que ponto somos oprimidos nas relações de trabalho enquanto designers.

Design & Opressão

E por fim, eu gostaria de mencionar que temos discutido esses assuntos sobre colonização, imperialismo e as possibilidades do que que o Design pode fazer para contribuir com a descolonização e autonomização dos nossos projetos e das comunidades dentro da rede Design e Opressão, uma atividade de extensão vinculada a um projeto de extensão que eu tenho desenvolvido com o professor Marco e a professora Cláudia aqui no departamento, o Laboratório de Design contra Opressão (LADO).

Essa rede engloba vários outros grupos de pesquisa de outras universidades, tem algumas pessoas aqui presentes como a Bibiana Serpa e Sâmia Batista. Atualmente estamos estudando um livro chamado Designs for the Pluriverse escrito pelo antropólogo Arturo Escobar. Vale mencionar que esse livro tem sido referenciado como um dos mais importantes sobre Design de Transição, que, por sua vez, é uma referência que usamos bastante na própria construtuição do Design Prospectivo. Estou falando porque se alguém quiser estudar esse livro com nós, estamos começando a introdução dele na semana que vem, então sigam o link que está no bate papo para se inscrever e participar desse grupo de estudos.

Dialética do Design Prospectivo

Para finalizar, Design Prospectivo se baseia em uma relação dialética entre cenários e infraestruturas. Eu falei muito aqui hoje sobre a importância da descolonização dos cenários, mas também é importante descolonizar as infraestruturas. Se tivermos um processo de descolonização combinado, nós poderíamos então admirar o que o Vieira Pinto chama de o futuro do futuro e não mais se contentar com o futuro do presente que já foi domesticado pelo imperialismo.

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O que seria esse futuro do futuro? Ele configura-se pelas possibilidades de transformações sociais revolucionárias e pela realização de criações do pensamento, particularmente o exercício do poder inventivo, que determinarão novas formas de organização da sociedade e das mediações tecnológicas.

Então esse futuro do futuro não é só uma continuação do presente, ele é um futuro que tem a capacidade de ser imprevisível, mas tão imprevisível que poderia se mudar todo o sistema sociotécnico em todas relações com os sistemas naturais, que é a grande ambição desse programa de pós-graduação do Design Prospectivo de pensar em grandes sistemas. Essa aqui é uma ilustração muito bacana que a nossa colega Fernanda Botter fez, que está aqui inclusive conosco voltando da licença maternidade. Seja bem vinda de volta Fernanda. Ainda estamos digerindo esse diagrama que você fez em um momento de inspiração.

Notem que, Vieira Pinto já falava sobre transição em 1973: "A transição entre etapas sociais no desenrolar do processo produtivo, a passagem a outros modos de convivência humana, expressos em novos tipos de regimes políticos, será a determinação fundamental das alterações do curso das técnicas." Para ele, a tecnologia não é um fim em si mesmo, mas um meio de libertação dos regimes políticos e modos de convivência humana coloniais e imperialistas que nos impedem de se humanizar e se tornar melhores do que nós somos. Gente, muito obrigado e vamos agora talvez a uma conversa, um debate sobre o que foi exposto?

Transcrição gentilmente realizada por Felipe Araujo de Miranda Gomes.


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Autor

Frederick van Amstel - Quem? / Contato - 29/07/2021

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Citação

VAN AMSTEL, Frederick M.C. Libertando futuros domesticados pelo design imperialista. Blog Usabilidoido, 2021. Acessado em . Disponível em: http://www.usabilidoido.com.br/libertando_futuros_domesticados_pelo_design_imperialista.html

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