Na educação, um dos grandes problemas relatados pelos educadores é a falta de motivação dos alunos em aprender o conteúdo curricular. As aulas expositivas que transmitem grande parte deste conteúdo são elaboradas durante longos períodos de tempo por professores e educadores. Contudo, essas aulas acabam sendo pouco interativas e não engajam os estudantes, que se vêem entediados.
Uma das soluções encontradas pelos estudantes para esse problema é a distração da atenção para algo mais motivador: um jogo no telefone celular. Enquanto o professor transmite o conteúdo, o estudante joga. Eventualmente, o estudante pode até prestar atenção aos dois motivos e conseguir acompanhar a aula, porém, isso não significa que ele irá aprender o conteúdo ou dominar as estratégias de jogo. A atenção dividida trava o desenvolvimento de qualquer pessoa, seja no papel de estudante ou de jogadora.
O jogo, diferente da aula expositiva, propõe vários motivos, inclusive motivos em conflito. Ganhar ou perder, atacar ou defender, arriscar ou esperar, compartilhar ou guardar pra si. O jogador precisa escolher o motivo certo na hora certa para progredir no jogo, porém, o jogo não deixa evidente o que fazer, do contrário, o conflito não existiria. Enquanto a exposição do professor apresenta uma realidade perfeita a qual o estudante precisa se adequar, o jogo propõe que o jogador crie a sua própria realidade interagindo com o jogo, mesmo que essa realidade criada não seja perfeita. É claro que o estudante se sente mais motivado a jogar do que prestar atenção na aula, pois a realidade se adequa ao estudante, exatamente o contrário do que na aula expositiva.
Muitos professores e escolas proíbem o uso de telefones celulares em sala de aula para evitar esse tipo de distração. Porém, alguns experimentam também como transformar a aula expositiva em jogo, de modo que os alunos se mantenham motivados a aprender o conteúdo curricular. Jogos educativos e gamificação da sala de aula são abordagens que introduzem conflitos de motivos relacionados ao processo aprendizagem, na esperança de desafiar os estudantes.
O conteúdo, entretanto, continua sendo disponibilizado como uma realidade perfeita, sem conflitos. Se o aluno domina o conteúdo, ele progride no jogo, caso contrário, ele perde pontos ou seu personagem morre. O conteúdo é perfeito, o jogador não. Jogos educativos e gamificação conteudista se baseiam, portanto, em elementos da pedagogia comportamentalista. A reação do jogador precisa ser correta para ele receber a recompensa, do contrário, recebe uma punição.
Para ir além da caixa de Skinner, é preciso transformar jogos educativos em jogos educacionais. Jogos educativos tentam ensinar um conteúdo sem a supervisão de um professor, ou seja, o jogo por si só educa. Já o jogo educacional é aquele que está inserido em um contexto educacional que apoia a aprendizagem com supervisão de um professor, ou seja, o jogo educacional é aquele que o professor utiliza ou que o estudante utiliza dentro de um processo educacional formal.
Ao invés de focar na assimilação de conteúdos, o jogo educacional foca na problematização da situação imaginária, colocando em evidência os conflitos de motivo existentes na atividade jogada. O professor utiliza o jogo educacional como recurso para problematizar uma realidade que não está pronta, que depende de interpretação. O jogo educacional, baseia-se portanto, na pedagogia construtivista. O jogo é um meio para a construção do conhecimento e não um conteúdo isolado.
O jogo educacional não precisa ser um jogo projetado para aprender algo em específico, tal como um jogo educativo. Qualquer jogo pode ser apropriado como um jogo educacional, desde que sejam colocados em conflito os motivos da situação imaginária com os motivos da vida dos jogadores. Pequenas alterações no sistema de regras ou nos temas dos jogos já são suficientes para trazer a realidade para dentro do jogo e criar uma excelente oportunidade de construção de conhecimento.
Quando a realidade é trazida para dentro do jogo, ela pode ser também transformada. Nesse quesito, a pedagogia construtivista oferece vantagens em relação à pedagogia conteudista, pois considera os motivos que estão no cotidiano do estudante, sendo o jogo um meio para descobrir como e porque transformá-los pela própria atividade. Ao invés de mensurar resultados de aprendizagem e recompensar ou punir o estudante de acordo com a sua performance, o jogo educacional motiva o estudante a embarcar em uma jornada de desenvolvimento pessoal e também de desenvolvimento coletivo, juntamente com os demais que jogam.
Eu tenho utilizado jogos educacionais como um recurso pedagógico na criação do meu próprio filho há muitos anos. Quando ele ainda era um bebê eu tive contato com a Teoria da Atividade e desde então passei a me guiar pelas implicações pedagógicas desta teoria na minha atividade parental. Um dos fundamentos da teoria é a internalização de signos que servem para agir no campo simbólico da cultura em que o sujeito está inserido. Compreender o significado e as possibilidades de ação de palavras e ferramentas é fundamental para ser humano em sociedade.
Sendo assim, procurei criar oportunidades de internalização para meu filho. Quando ele tinha 2 anos de idade, eu queria mostrar a ele o que era um computador. Para a época (2004), isso era um pouco estranho, mas hoje em dia bebês já são estimulados a mexer em smartphones e tablets. Comecei primeiro mostrando a ele animações e desenhos animados no computador.
Depois, eu quis ensinar a ele como escolher o desenho animado que ele queria assistir, porém, para isso, ele precisaria dominar o mouse. Na época, eu trabalhava com web design, fazendo principalmente sites em Flash. Fiz um jogo no qual o apontador do mouse era o desenho de uma mão gigante, buscando com isso diminuir a distância entre o movimento do mouse desconhecido e o movimento da mão já conhecido. Haviam 4 quadros coloridos na tela. Quando o jogador clicava em um quadro, revelava-se a imagem de um animal escondido juntamente com seu grunhido, latido ou som característico.
Para diminuir a taxa de erros e facilitar a operação, apliquei a Lei de Fitts, que postula que os alvos mais fáceis de se alcançar com o mouse são os cantos das telas. Estendi os quadros do centro da tela até os limites da tela, de modo que movimentos muito bruscos e descoordenados ainda assim resultariam em uma ação caso fossem seguidos do clique. Antes de aprender a apontar um alvo específico, meu filho percebeu que havia uma relação entre o movimento do mouse e o clique. Ao invés de buscar um alvo específico, ele girava o mouse e clicava sem parar, gerando uma confusão sonora que muito o interessava. Com o tempo, ele foi aprendendo a transformar o motivo do prazer imediato no motivo da curiosidade pelos animais representados, porém, isso não foi o suficiente para desenvolver a coordenação motora fina necessária para operar o mouse aos dois anos de idade.
Quando ele tinha 4 anos, comprei um PocketPC, um PDA com tela touchscreen que rodava Flash. Ao pesquisar jogos educacionais que pudessem rodar no dispositivo, percebi que a maioria deles eram jogos educativos que não consideravam a perspectiva da criança. Os motivos introduzidos pelos jogos não tinham a ver com a realidade da criança e não havia conflito entre eles.
Conforme escrevi na época, decidi desenvolver alguns jogos em Flash junto com meu filho, a partir dos motivos que já estavam na sua realidade. O primeiro tinha o motivo da organização de estímulos visuais, que ele já desenvolvia com seus desenhos espontâneos de sistemas elétricos. Depois, fiz um jogo sobre o preparo de um alimento que ele gostava: a vitamina de frutas. Quando ele iniciou o processo de alfabetização, criei o Alfabeto do Som para ajudar a memorizar as letras. Por fim, o último jogo que criei foi o Tartaruga Turbinada, uma adaptação de um livro que tinha como principal inovação a possibilidade de ler o texto passando o dedo embaixo das palavras. A experiência com esses jogos customizados foi importante para ele jogar e analizar criticamente outros jogos.
Depois de alguns anos jogando jogos, ele começou a se interessar em fazer fazer seus próprios jogos. Quando ele tinha 7 anos, ensinei-o a programa em Scratch. Ele fez dezenas de jogos junto comigo, uma atividade importantíssima para nós, pois estávamos separados fisicamente. Enquanto eu realizava o doutorado na Holanda, ele estava no Brasil. A gente sentia que estávamos brincando juntos dentro do espaço que o computador nos proporcionava.
Aos 13 anos, ele foi convidado a dar uma palestra sobre essa experiência no TEDx Santos Andrade, uma edição voltada para a educação. Ele começou sua fala com uma reflexão importante: os professores que dizem que os alunos não têm motivação para aprender, mas para ele isso não era verdade, pois todos tinham motivos que os interessavam, eles só não estavam presentes no currículo escolar. Ele gostava de programação, mas nenhuma escola que cursou trabalhou esse motivo. Aos 14, ingressou em um curso de ensino médio combinado com técnico de programação de jogos e pôde finalmente conhecer esse motivo profundamente. O seu TCC foi um jogo sobre os dilemas morais que os jovens enfrentam em seus dia-a-dia e como eles contribuem para a construção da sua personalidade.
Diante dessa história, não restam dúvidas de que jogos podem motivar a aprender. Porém, é preciso que eles sejam projetados, problematizados e modificados por professores ou pelos pais. Os motivos só vingarão se estiverem relacionados à realidade da criança e do estudante. A presença de motivos em conflito é importante também para propor uma decisão e apresentar suas consequências, assim o desenvolvimento de habilidades ocorre juntamente com o crescimento ético. Aprender a ser humano, mas do que aprender conteúdos deve ser a prioridade do design e uso de jogos educacionais.
Nota de agradecimento: esse texto foi materializado a partir da transcrição de uma aula minha realizada por Jenifer Jang. Que ver mais textos como esse? Ajude a transcrever outras aulas.
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