A logo desenvolvida pelo publicitário Elsinho Mouco para o governo interino de Michel Temer recebeu diversas críticas: a similaridade com o ultrapassado estilo da Globo de Hans Donner, o alto custo de impressão, a ausência de estrelas que representam alguns estados brasileiros e outras. A mais contundente das críticas, na minha opinião, é sobre o processo de escolha baseada no gosto do filho do Presidente.
Assim como a maioria das identidades visuais construídas em nossa sociedade, essa logo foi feita para representar as intenções do governo Michel Temer e não as intenções da população. A identidade visual é imposta de cima para baixo sem processos democráticos de criação ou validação.
Designers, publicitários e políticos fazem assim porque desconhecem ou não querem conhecer a maneira democrática que existe para criar identidades visuais. Desperdiçam assim a oportunidade de usar esses processos para compreender melhor as intenções da população, consumidores e usuários.
Ao invés de apenas criticar essa prática, vou mostrar como é possível fazer diferente. Compartilho um caso democrático que pude observar na Prefeitura de Curitiba durante o projeto da logo da Escola Pública de Trânsito de Curitiba, a EPTran.
A EPTran é um lugar onde crianças e adultos podem aprender mais sobre a convivência no trânsito. Ela oferece eventos, cursos e apoio para escolas públicas, taxistas, motoristas de ônibus e ciclistas. Ela é um espaço comunitário, tal como o código de trânsito estabelece.
Inaugurada em setembro de 2015, a escola teve sua primeira identidade visual construída às pressas pela Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura. O diretor da EPTran avaliou que o resultado não estava condizente com a missão da escola mas não sabia como explicar à Secretaria o que precisava.
O diretor Sandro Fernandes entrou em contato comigo e me perguntou se poderíamos contar com o apoio da PUCPR no projeto. A PUCPR assinou em setembro do ano passado um documento declarando suas intenções em desenvolver projetos de mobilidade junto com a Prefeitura de Curitiba. Era uma ótima oportunidade para validar o método que desenvolvi para criação coletiva de identidades visuais.
Organizamos, então, uma oficina de co-criação com o objetivo de gerar ideias para a logo da EPTran, que serviriam depois de insumo para o trabalho da Secretaria de Comunicação Social. Foram convidados todos os interessados (stakeholders) da escola: agentes de trânsito, instrutores, guardas municipais, membros de diversas secretarias da prefeitura e diretores de escolas públicas. Contamos também com a participação de um especialista em identidade visual e marketing, meu amigo Melqui Júnior.
Aquecemos a oficina com uma breve explicação sobre o que é uma identidade visual, como elas são criadas e a importância de fazer esse processo em público e de maneira livre. Foi apresentado o caso da logo das Olimpíadas do Rio 2016, criada de maneira colaborativa pela Tátil.
Depois de alguns minutos, estávamos prontos para por a mão na massa. Queria que cada um expressasse sua visão da identidade da EPTran mesmo que não pudesse desenhar. Escolhi, portanto, começar com Lego, inspirado no método Lego Serious Play.
Os modelos construídos pelos participantes tornavam tangíveis os valores que deram origem à escola. Me chamou a atenção o modelo de Gustavo Garrett, o coordenador de mobilidade urbana da Setran. Ele propôs o conceito de que a escola tenta mostrar que o trânsito não é feito de carros, mas de pessoas. Partindo dessa percepção, fica clara a missão da escola de promover o convívio entre pessoas e também a preservação do meio ambiente.
Depois de todos mostrarem seus modelos, pedi que os modelos fossem retirados da mesa e os papéis mantidos. Fizemos, então, uma colagem com recortes de revista que visualizassem os conceitos nos papéis. O objetivo era começar o processo de criação da identidade visual à partir de imagens pré-existentes para evitar o temido "bloqueio de criatividade".
Quando a colagem estava pronta, pedi que fossem acrescentadas palavras-chave que sintetizassem grupos de imagens, atribuindo um significado especial a elas. Essas palavras foram mantidas na mesa, enquanto as fotos foram retiradas.
O jogo engarrafamento de imagens trouxe o desafio de criar formas simples que representassem as palavras-chave geradas anteriormente. As imagens foram geradas individualmente e agrupadas abaixo das palavras-chave, permitindo ver as diferentes maneiras que cada conceito era visualizado pelos participantes.
As imagens geradas nessa fase poderiam já fazer parte da identidade visual final, porém, haviam muitas delas e era preciso fazer uma seleção. Utilizamos o voto ponderado em que cada participante podia colocar três adesivos em formato de círculo colorido nas imagens que julgasse mais fortes.
Os conceitos foram retirados junto com as imagens menos votadas e passamos então à pensar diretamente na logo utilizando a matriz gráfica, um template que criei para perceber os elementos de uma logo: tipografia, contorno, forma, ritmo e textura. Cada um tinha que selecionar primeiro dentre as opções do template e depois fazer um esboço da logo da EPTran. Ideias diferentes foram propostas, porém, apareceu um padrão de círculo, pessoas e setas entre os esboços.
Os esboços foram encaminhados à Secretaria de Comunicação Social, que respondeu com a logo abaixo após algumas semanas.
É uma logo moderna, com linhas econômicas e cores diversas. Eu achei ela bem interessante, porém, sem vínculo algum com os esboços dos participantes da oficina. Isso aconteceu, acredito eu, porque a Secretaria de Comunicação Social não conseguiu enviar um representante para participar da oficina e ficou sem entender direito o que tinha sido construído. Então, após eu e o Sandro explicar direitinho o que tinha acontecido, a secretaria retornou com uma nova versão da logo que contemplou as expectativas.
O conceito fundamental é que o trânsito é feito de pessoas e não de veículos. A escola é representada como um espaço que agrega pessoas de diferentes cores num abraço dinâmico (elipse). As cores são as mesmas do semáforo, porém, há também as cores da sobreposição que representam o que elas tem de comum. Essas pessoas não estão sendo contidas pelo abraço, como nos esboços dos participantes, mas estão emergindo de dentro dele, como se estivessem sendo apoiadas pela escola. Por fim, a tipografia de cantos arredondados assinala um toque leve e humano à organização.
A logo é assinada por Cintya Resse, designer da Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura de Curitiba. Ao invés de contrarar uma agência terceirizada como a Prefeitura fazia em gestões passadas, desta vez a identidade visual foi desenvolvida internamente, economizando recursos financeiros.
O Prefeito Gustavo Fruet e a Secretária de Trânsito Luisa Simonelli me agradeceram a participação no projeto, porém, o mérito maior é dos participantes da oficina que conseguiram fazer o árduo trabalho de criação, análise e síntese do primeiro ciclo do projeto. Depois vem o mérito da Cintya que criou em cima do que os participantes tinham criado, analisou similares e sintetizou uma logo profissional. Meu mérito, se é que tenho algum, é de facilitar o processo.
O projeto da logo da EPTran é mais um exemplo de democracia pelo design. Ao invés de dar forma às intenções de um líder político, esse tipo de design é uma oportunidade para políticos, servidores públicos, professores universitários, profissionais liberais e cidadãos se conhecerem melhor e construir algo em conjunto. O resultado desse esforço conjunto é que todos se sentem representados pelo que é criado.
Que identidade visual é um instrumento político, isso todo mundo já sabe. O que fica claro com esse projeto é que a identidade visual pode também ser um instrumento para ampliar a democracia ao invés de substituí-la por uma representação. A logo da EPTran não representa a diversidade, pois ela É a diversidade posta em prática. Isso parece paradoxal, mas é um efeito curioso do alinhamento entre processo e resultado semiótico que todos os participantes contribuíram para acontecer.
Eu estudo esse fenômeno de maneira científica no artigo que publiquei no períodico Building Research & Information. O caso da EPTran é mais uma evidência que sustenta minha teoria sobre a expansividade do espaço de representações.
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